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Luciano Trigo

Luciano Trigo

Intelectuais

O que Rousseau diz sobre o Brasil de hoje?

(Foto: Luciano Trigo com ChatGPT)

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Encontrei em um sebo do Centro do Rio um livro esgotado há décadas: “Os intelectuais”, do historiador britânico Paul Johnson. Paguei os olhos da cara, mas só a leitura do primeiro capítulo já justificou o investimento. Lançado em 1988, o autor faz uma análise incisiva do papel e da influência dos intelectuais, de Rousseau e Marx a Sartre e Chomsky, examinando suas ideias, suas vidas pessoais e suas contradições morais.

Um traço comum a todos os personagens do livro é que pregaram virtudes públicas, mas fracassaram miseravelmente, do ponto de vista moral, em suas vidas privadas, marcadas pelo egoísmo e pela hipocrisia. Johnson demonstra que, como guias que se colocaram acima da sociedade, eles adotaram a “retórica da virtude” como uma maneira de legitimar sua influência e, ao mesmo tempo, se isentar de responsabilidades pessoais, combinando idealismo público e egoísmo privado.

Johnson lista uma série de intelectuais que, ao se arrogarem o papel de porta-vozes dos interesses da sociedade, defenderam tiranias e promoveram ideologias que tiveram consequências desastrosas, além de um custo elevado em sofrimento e vidas humanas.

O primeiro capítulo é dedicado a Jean-Jacques Rousseau (1712–1778), cujas críticas à desigualdade estão na origem da esquerda moderna. O filósofo genebrino é apresentado como o protótipo do intelectual que fala em nome dos pobres, enquanto vive de maneira materialmente confortável e moralmente desonesta.

Ao se apresentar como defensor dos oprimidos, criticando a aristocracia e a corrupção das elites, Rousseau inaugurou a tradição da esquerda de usar a defesa do povo como uma fachada para justificar seu desejo de poder.

O filósofo se via como um profeta, mas era incapaz de lidar com críticas ou viver de acordo com seus ideais. Ele não apenas inaugurou maneiras de refletir sobre o poder e a desigualdade, mas também um novo modelo de comportamento: a partir dele, o intelectual é o homem que se coloca acima da moral comum, por acreditar servir a um ideal superior.

Rousseau foi um teórico da virtude que recusou sistematicamente qualquer dever pessoal de praticá-la. Era um moralista que se julgava acima da moral. Esse abismo entre teoria e prática não é um detalhe, mas o núcleo de sua influência posterior sobre movimentos radicais, incluindo o jacobinismo francês e o socialismo marxista.

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Rousseau é o Adão da hipocrisia intelectual da esquerda. Ele ensinou que ser progressista é mais uma questão de retórica do que de conduta

Durante a Revolução Francesa, líderes jacobinos usaram ideias de Rousseau para legitimar a violência e a guilhotina em nome do bem comum. Johnson afirma que, ao priorizar a abstração da coletividade sobre a concretude do indivíduo, o filósofo abriu as portas para regimes que sacrificam a liberdade em nome da igualdade.

Um dos aspectos da vida privada de Rousseau mais criticados por Johnson é o abandono dos cinco filhos que ele teve com a Thérèse Levasseur, uma lavadeira com quem manteve um longo relacionamento clandestino. O homem que escreveu sobre a importância da educação das crianças entregou todos os filhos a um orfanato público logo após o nascimento.

Dadas as condições dos orfanatos da época, é provável que nenhum tenha chegado à idade adulta. Rousseau jamais os visitou nem demonstrou remorso por seu ato. Além disso, ele tratava a amante com desdém, referindo-se a ela em termos depreciativos em suas cartas.

O filósofo também era narcisista e vitimista, mais preocupado com sua imagem do que com a verdade: em suas “Confissões”, uma das primeiras autobiografias modernas, Rousseau se apresenta como vítima: da sociedade, dos amigos, das mulheres, dos outros filósofos. Ele nunca assume responsabilidade por seus erros, sempre se coloca como injustiçado.

Para Rousseau, quem serve à “vontade geral” que ele julga representar está moralmente acima do bem e do mal. É legítimo mentir, trair ou matar, desde que se esteja do lado "certo" da história. Essa lógica, como Johnson insinua, é o embrião dos totalitarismos modernos, que subordina a moralidade à ideologia, com os fins justificando todos os meios.

Rousseau é, nesse sentido, o Adão da hipocrisia intelectual da esquerda. Ele ensinou, com seu exemplo, que ser "progressista" é mais uma questão de retórica do que de conduta. Trata-se de uma elite que se apresenta como moralmente irrepreensível por estar "do lado certo da história".

As críticas de Paul Johnson a Rousseau iluminam problemas centrais no Brasil de 2025, como a hipocrisia dos políticos e intelectuais de esquerda, o uso manipulador da retórica de virtude e o narcisismo de líderes que se veem como salvadores da pátria. Quase todos condenam o capitalismo e “as elites” e defendem políticas de redistribuição e inclusão social, mas levam estilos de vida luxuosos e estão constantemente envolvidos em escândalos de corrupção.

No ambiente acadêmico é pior ainda: todos criticam as estruturas de poder, mas vivem dentro de bolhas privilegiadas. Defendem o povo em artigos ou palestras e escrevem longas teses de doutorado pregando a justiça social, mas raramente se envolvem com as comunidades que dizem representar. Assim como Rousseau romantizava o "bom selvagem", há quem hoje romantize a "periferia" sem jamais pisar nela.

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Muitos programas sociais são desenhados não para emancipar os pobres, mas para mantê-los dependentes do Estado e de seus benfeitores

A esquerda universitária fala em nome das minorias oprimidas, mas despreza frequentemente o povo real — especialmente quando este vota no candidato “errado", ou seja, qualquer um que não seja de esquerda. Há um abismo entre o povo idealizado nas narrativas e o povo concreto, com seus valores frequentemente conservadores, cristãos e nacionalistas.

Também é bastante comum ver intelectuais e artistas que vivem de recursos públicos ou incentivos estatais se colocarem como vítimas da "opressão neoliberal" — mesmo gozando de status, riqueza e prestígio. Essa inversão moral é herança direta do modelo de Rousseau: o discurso contra a exclusão serve para blindar pessoas que, na prática, estão entre as mais privilegiadas da sociedade.

Quando figuras públicas pregam a redistribuição de riqueza enquanto acumulam fortunas, quando denunciam o patriarcado mas abusam emocionalmente de suas mulheres, ou quando condenam o consumo enquanto vivem de forma opulenta, eles se tornam não apenas hipócritas, mas caricaturas daquilo que criticam.

Johnson mostra que Rousseau não tinha grande amor pelo povo real, mas por uma ideia abstrata do homem. No Brasil, a retórica popular também serve como instrumento de poder, não como expressão de empatia autêntica. O povo é evocado em discursos, slogans, campanhas – mas, na prática, é manipulado, infantilizado e usado como massa de manobra.

A política assistencialista é um exemplo. Muitos programas sociais são desenhados não para emancipar os pobres, mas para mantê-los dependentes do Estado e, por consequência, de seus benfeitores políticos. Esse paternalismo é puro suco de Rousseau: coloca o Estado no papel de tutor moral e o cidadão no papel de criança passiva, incapaz de autodeterminação.

Todos os regimes autoritários ao longo dos séculos legitimaram a repressão em nome do bem comum. No Brasil atual, vemos ecos disso naqueles setores que defendem censura, o controle da mídia e perseguição a adversários políticos sob o pretexto de combater o discurso de ódio ou proteger a democracia.

Os herdeiros de Rousseau parecem compartilhar a crença tácita de que quem "pensa certo" está moralmente autorizado a calar os outros. Daí a importância de se cultivar a desconfiança em relação a qualquer um que se apresente como autoridade moral ou arquiteto de mudanças sociais.

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