• Carregando...
Escultura “Memorial para as crianças não nascidas” (2012), do artista eslovaco Martin Hudacek
Escultura “Memorial para as crianças não nascidas” (2012), do artista eslovaco Martin Hudacek| Foto: Divulgação

Uma das atrações internacionais da FLIP – Festa Literária Internacional de Paraty, que acontece neste final de semana, é a escritora francesa Colombe Schneck. Ela falará amanhã, sábado, na mesa “Os passarinhos se escondem dos homens”, com transmissão ao vivo no Youtube.

Embora seja autora premiada de uma dezena de outros livros, o romance pelo qual Colombe costuma ser lembrada é o relato autobiográfico Dezessete anos, no qual ela rememora a experiência do aborto que fez quando era adolescente – e que considera a “decisão mais acertada da sua vida”.

Dezessete anos é o tema de uma entrevista recente da autora à revista feminina “Marie Claire” – “Se posso ser a mulher que sou hoje, foi porque pude fazer um aborto aos 17 anos” – que analisarei a seguir.

Alerto que, embora eu tenha uma opinião formada sobre o tema, este artigo não será um libelo pró ou contra o aborto: será apenas uma tentativa sincera de entender uma experiência individual e suas consequências, com base nas palavras de quem passou por ela.

Talvez até menos que isso: será apenas uma interpretação alternativa, entre outras possíveis, das entrelinhas e do subtexto do que a própria escritora diz.

Pois bem, o que percebi já a partir do título da entrevista é a necessidade de justificar – para si mesma talvez, mais do que para os outros – uma decisão tomada há quase 40 anos, em 1984.

Colombe Schneck está hoje com 57 anos. Passado tanto tempo, ela parece continuar em busca de validação, ou de autovalidação – e a segunda pode ser mais difícil de conseguir que a primeira. A própria autora reconhece que o aborto “...não é uma escolha fácil. É a maior decisão que você vai tomar na sua vida. Você passa pelo dilema da vida e da morte”.

Ora, Colombe está certa quando diz só poder ser a mulher que é hoje por ter abortado aos 17 anos. Mas isso não quer dizer muita coisa, porque, se não tivesse abortado, a mesma declaração continuaria verdadeira.

Seremos sempre o resultado das decisões que tomamos, das escolhas que fazemos ao longo da vida. Se não tivesse abortado aos 17 anos, Colombe Schneck talvez tivesse escrito outros livros, de maior ou menor sucesso.

Ou talvez nem tivesse se tornado escritora, talvez fosse hoje uma militante pró-vida, dando entrevistas dizendo: “Se posso ser a mulher que sou hoje é porque não fiz um aborto aos 17 anos e escolhi ser mãe, enfrentando todas as dificuldades”.

Talvez Colombe fosse hoje uma mulher mais feliz, ou menos feliz; mais famosa, ou menos famosa; mais rica, ou mais pobre, do que é hoje. Não importa. O que quero dizer é que tentar comparar a mulher que ela é hoje com a mulher que ela seria se não tivesse abortado é um exercício inútil.

Quando se toma uma decisão irreversível e irremediável, de vida ou morte, como um aborto, um caminho se fecha, outros se abrem. Impossível saber aonde levaria o caminho que se fechou.

Mas vou insistir no ponto da aparente necessidade de validação. (Repito: escrevo com base exclusivamente na entrevista e posso estar redondamente enganado).

Colombe fala da vergonha e da culpa que sentiu durante mais três décadas, até ousar falar publicamente sobre o assunto e escrever o romance Dezessete anos, publicado originalmente na França em 2015.

De certa forma, a escritora se coloca como vítima de uma sociedade que oprime as mulheres que abortam, por fazer com que elas se sintam culpadas e envergonhadas. Ou seja, a culpa e a vergonha viriam de fora.

Mas, ao mesmo tempo, ela informa que teve total apoio do pai, que era médico, e da  mãe, que era feminista. Informa, também, que em 1984, quando ela abortou, o aborto já estava legalizado na França desde 10 anos antes, 1974, ano em que foi aprovada uma lei proposta pela então ministra da Saúde Simone Veil.

Ora, se Colombe teve o apoio da família e se o aborto já estava legalizado, me parece legítimo  considerar outra hipótese: a vergonha e a culpa que duraram mais de 30 anos vinham de dentro dela, e não de fora, de uma sociedade opressora.

Algo dentro dela a fazia se sentir culpada, ainda que não tenha feito objetivamente nada errado, nem do ponto de vista legal, nem do ponto de vista de sua família. E essa culpa, aparentemente, se arrastou pela vida inteira.

Este é um ponto importante, porque, sempre que se debate o tema no Brasil, muitas pessoas se comportam como se o aborto fosse apenas uma questão de legislação e convenção social, desprovida de qualquer aspecto moral (e muito menos espiritual).

Sempre que se debate o tema no Brasil, muitas pessoas se comportam como se o aborto fosse apenas uma questão de legislação, desprovida de qualquer aspecto moral ou espiritual

E, seguramente, a participação de Colombe Schneck na FLIP será reduzida a isso, a um ato em defesa da legalização do aborto – ignorando-se, mais uma vez, as consequências interiores na vida das jovens e adolescentes estimuladas a abortar como se este fosse um procedimento semelhante à extração de um dente.

A própria escritora defende a legalização do aborto, o que é direito dela. Mas algo não fecha: se ela não precisou fazer um aborto clandestino, se nem mesmo enfrentou a oposição familiar, por que ainda hoje ela parece tentar se convencer de que o aborto foi uma decisão acertada?

Espero estar enganado, porque o remorso é um sentimento muito ruim, mas a entrevista sugere que Colombe não passou um dia da sua vida em que ela não tenha pensado no aborto.

Uma vida inteira ruminando uma decisão, uma vida inteira carregando um fardo que não tem nada a ver com legislação – justamente porque, por mais que se negue, o aborto tem, sim, uma dimensão moral e espiritual com a qual será inevitável lidar, mesmo quando abortar é algo legal e socialmente aceito.

O que concluí da leitura da entrevista de Colombe Schneck é que mesmo uma jovem privilegiada, criada por um médico liberal e uma mãe feminista, vivendo em um país rico do Primeiro Mundo, no qual o aborto já era legal; que mesmo uma jovem privilegiada que dispôs de todas as condições objetivas para passar naturalmente e sem maiores traumas pela experiência de abortar; que, em suma, mesmo uma jovem assim, conviveu durante décadas com a vergonha e a culpa, sentimentos que precisou exorcizar escrevendo um livro – o que sugere que este foi um episódio que marcou sua vida inteira, que este foi um eixo em torno do qual sua vida inteira girou.

Também concluí, por tudo isso, que é preciso ter muito cuidado, mas muito cuidado mesmo, antes de tentar convencer adolescentes e jovens (muitas vezes pobres), de um país de maioria pobre, em um país de maioria conservadora nos costumes, de que abortar é algo simples, natural e inconsequente, de que o aborto não traz sequelas interiores que elas talvez precisem carregar pelo resto de suas vidas.

Mas desconfio que ninguém, nem na FLIP nem na grande mídia, chegará às mesmas conclusões que eu.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]