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Para o fanfarrão Zizek, pandemia trará a volta do comunismo
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O filósofo esloveno Slavoj Zizek foi um dos primeiros pensadores da moda a lançar um livro sobre o impacto do coronavírus no mundo: a edição original de “Pandemia – Covid-19 e a reinvenção do comunismo” já estava nas livrarias no final de abril. Em três meses muita coisa mudou, o que torna a obra precocemente datada. Mas este é o menor dos problemas: como o próprio subtítulo da edição brasileira sugere, Zizek faz da catástrofe um pretexto para pregar a volta do comunismo como solução para a crise planetária. Oi?

O próprio Zizek parece não levar muito a sério a proposta, pois o que chama de comunismo, explica, são formas emergentes de cooperação e solidariedade entre as pessoas e entre os países, entre os mercados e entre os Estados, que o vírus tornará necessárias. Equiparar comunismo e cooperação é apenas mais um truque retórico para associar a esquerda ao bem e a direita ao mal, tentando tornar palatável a ideia do comunismo ao leitor inocente e atribuindo ao capitalismo a culpa pela pandemia do vírus chinês. Oportunismo ideológico: uma vez criada a narrativa, o papel aceita qualquer coisa.

Slavoj Zizek é um fanfarrão.

Longe de trazer qualquer contribuição relevante para o debate, “Pandemia” é, na verdade, uma reunião de textos impressionistas, sem qualquer compromisso com o rigor: Zizek salta aleatoriamente de um a tema a outro, sem se aprofundar em nenhum. Essa ligeireza empresta ao texto uma aparência de urgência que apenas camufla a superficialidade de seu pensamento. Com seu estilo peculiar e verborrágico, Zizek alterna frases de efeito com citações a Hegel, Jacques Lacan, o cineasta Quentin Tarantino e até Jesus Cristo, segundo o Evangelho de João (em uma de suas boutades, o autor já se definiu como um “cristão ateu”).

“Pandemia” não é confuso apenas na forma, mas também no conteúdo. Zizek ora condena o autoritarismo do governo chinês (“Se a China valorizasse a liberdade de expressão, não haveria a crise do coronavírus”), ora defende ações autoritárias, como o confisco pelo Estado da produção de máscaras e outros equipamentos: “Em tempos de pandemia é preciso um Estado forte, uma vez que medidas de larga escala, como quarentenas, devem ser implementadas com disciplina militar”, escreve. “As máscaras deveriam ser simplesmente confiscadas”. Certo. E assim ninguém mais produziria máscaras....

Nessa toada, Zizek chega a se aproximar da tese de que não podemos permitir que a cura seja pior que o problema: “É claro que um país inteiro não pode – o mundo menos ainda – permanecer indefinidamente paralisado”. Um certo presidente foi massacrado por dizer isso, não? Aliás, Giorgio Agamben, outro pensador de esquerda citado respeitosamente no livro, foi ainda mais longe: atacou o alarmismo da mídia e classificou a Covid-19 como uma “gripe normal” (gripezinha?) – e as quarentenas como “frenéticas, irracionais e absolutamente injustificadas”, diante de uma “suposta” epidemia de coronavírus.

O filósofo esloveno Slavoj Zizek: oportunismo ideológico
O filósofo esloveno Slavoj Zizek: oportunismo ideológico

(Mas é claro que ninguém vai cancelar Agamben por isso: porque o que importa na guerra de narrativas não é aquilo que se fala, mas quem fala. Agamben e Zizek são queridinhos da nova esquerda, portanto têm salvo-conduto para escrever a barbaridade que quiserem. Depois dá-se um jeito de demonstrar que não foi bem isso que eles quiseram dizer.)

O duplipensar continua: Zizek ora subestima, ora superestima as dimensões da pandemia; ora afirma acreditar que o coronavírus aumentará a solidariedade entre os povos, ora sugere que, ao contrário, a pandemia só servirá para isolá-los; ora defende as liberdades individuais, ora apoia seu cerceamento brutal pelo Estado; ora adverte contra a tentação de enxergar um lado bom na pandemia, ora faz exatamente isso, como se o custo, passado e futuro, em sofrimentos e vidas humanas fosse um preço razoável a ser pago pelos seus insights como filósofo radical.

Como é inevitável em um livro escrito às pressas, o autor também abusa dos clichês, do tipo “Agora estamos todos no mesmo barco”. Não, não estamos: podemos estar na mesma tempestade, mas em barcos muito diferentes. Na versão limpinha do comunismo de Zizek, a pandemia tornará as pessoas mais companheiras, isto é, dispostas a sacrificar liberdades individuais em nome do bem-estar comum gerido por um Estado forte. Outra falácia, pois está ocorrendo justamente o contrário: em todo o planeta, Estados e organizações como a OMS - Organização Mundial da Saúde demonstraram sua incompetência para agir diante do inesperado. Zizek defende, ainda, a adoção de uma renda básica universal, ignorando (ou fingindo ignorar) que a proposta já foi defendida pelo neoliberal Milton Friedman 50 anos atrás - e que está em vias de ser implementada por um governo de direita, no Brasil.

Mesmo sendo um marxista, em alguns trechos do livro Zizek se mostra inteligente e até engraçado, capaz de sacadas interessantes. É o caso da análise que faz da aproximação entre a Rússia de Putin e a Turquia de Erdogan – parceria que ele chama de “Putogan”. Zizek demonstra de forma convincente de que maneiras o Putogan representa uma ameaça aos refugiados locais. “Mas que diabos isso tem a ver com a pandemia?”, o leitor deve estar se perguntando. Pois é, nada, a não ser na medida em que todas as coisas estão relacionadas umas com as outras.

Outro raro bom momento do livro é a crítica que o autor faz ao politicamente correto: “Experimente só contar uma piada suja e você imediatamente sentirá a força da censura do politicamente correto”, afirma. Cuidado, Zizek! Escrevendo coisas assim, você corre o risco de ser cancelado!

Zizek também acerta quando observa que israelenses e palestinos adotaram uma estratégia colaborativa – o que, evidentemente, não tem nada a ver com comunismo – no combate à pandemia. (Ou seja, diante da tragédia, até judeus e palestinos se uniram, mas no Brasil a divisão só se acirrou, com a agenda política do “ódio do bem” fincando raízes e tentando capitalizar o sofrimento da população.)

Por fim, concordo com Zizek quando ele especula que o “novo normal” será muito diferente do normal antigo. Acho, como ele, que algumas mudanças vieram para ficar. Pelo menos até que se descubra uma vacina eficaz, o que pode levar bastante tempo, a tendência é o vírus continuar circulando entre nós, fazendo vítimas e impondo novas maneiras de viver e conviver – o que, de novo, não tem nada a ver com comunismo.

O prefácio à edição brasileira, assinado pelo psicanalista Christian Dunker, merece um comentário à parte. O que importa destacar aqui é que rigorosamente tudo de ruim que Dunker atribui à direita (ao governo fascista de Bolsonaro, leia-se nas entrelinhas) foi praticado, muito antes, pela esquerda. Vou citar dois exemplos:

1) Ele fala de “(...) uma divisão social organizada pela produção paranoica de inimigos”. Ora, foi nos governos do PT que os brasileiros foram deliberadamente divididos em “nós” e “eles”, transformando em inimigos a abater (“Elites!”; “Fascistas!”) todos aqueles que não rezassem pela cartilha lulopetista. Ou não foi? É preciso reconhecer ao menos isso, para se começar a entender a natureza e a força do movimento contrário que essa estratégia produziu (ação e reação é uma lei básica da Física: agora o pêndulo precisa completar seu ciclo). Caso contrário, o debate político se reduz a uma guerra de narrativas desonesta e mentirosa, que já provocou males demais ao país;

2) Ele escreve, alarmado, que “as vidas errantes e famintas nas ruas das grandes metrópoles brasileiras tornaram-se visíveis e problemáticas”. Ora, é bom que seja assim. Esses milhões de brasileiros sempre existiram, mas ficaram camuflados por décadas – inclusive nos governos do PT, que venderam o discurso triunfalista de que tinham acabado com a miséria (ao mesmo tempo em que os índices de violência disparavam).

Ou seja, a invisibilidade fazia parte do problema: que bom que esses brasileiros se tornaram visíveis e problemáticos. Mas cabe lembrar que foi preciso um programa emergencial de um governo de direita para revelar a existência dessa população, durante décadas ignorada pelas estatísticas. E, ironicamente, será um governo de direita que implementará o que pode se tornar o maior programa de renda básica universal do planeta. Para o bem e para o mal. Mas este é assunto para outro artigo.

Pandemia – Covid-19 e a reinvenção do comunismo, de Slavoj Zizek. Tradução de Artur Renzo. Boitempo, 136 pgs. R$ 39

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