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Luciano Trigo

Luciano Trigo

Guerra por procuração

Quem ameaça quem na Ucrânia?

(Foto: Enrique - ELG21/Pixabay)

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No meu artigo passado, “Coisas que não te contaram sobre a Guerra da Ucrânia”, tentei expor, de forma objetiva, os argumentos do cientista americano político Jeffrey Sachs contra a continuidade da guerra. Enfatizei que Putin é um ditador. E deixei claro que criticar Zelensky e a maneira como Biden e líderes europeus se comportaram (até Trump assumir o poder) não significa apoiar a invasão russa. Trata-se de mitigar danos e evitar mais dor e destruição.

O fato é que a guerra já completou três anos, já consumiu bilhões de dólares e há quem fale em mais de 1 milhão de ucranianos mortos. É fácil ostentar virtude no conforto do sofá da sala, mas quantas pessoas no Ocidente que rejeitam a via diplomática estariam dispostas a enviar seus filhos para o front?

O tema é complexo e deveria ser tratado de forma menos emocionada, sem pressa para acreditar na narrativa hegemônica da mídia. Até porque guerras não se resolvem com clichês e palavras de ordem nas redes sociais. Só acho.

Pois bem, da mesma forma que li e ouvi com atenção o que Jeffrey Sachs vem afirmando, inclusive em seu discurso no parlamento europeu na semana passada, também li e ouvi com atenção o que disse há poucos dias outro cientista político com um currículo respeitável, o canadense Michael Ignatieff, aliás autor de uma ótima biografia de Isaiah Berlin.

O site da BBC publicou anteontem uma longa entrevista de Ignatieff, da qual destaco alguns trechos relevantes a seguir, seguidos de comentários meus.

“Trump já deixou claro que não quer mais defender a Europa Ocidental. Em vez de chorar e arrancar os cabelos, a Europa tem de enfrentar os fatos. A Espanha gasta 1,3% do seu Produto Interno Bruto (PIB) em defesa. Não é suficiente. Durante 80 anos, nós demos como certa a proteção americana, mas agora ela está chegando ao fim. Então, não precisamos enlouquecer, simplesmente temos que nos defender".

Ignatieff despreza Donald Trump, a quem chama de “enganador” e “um caso de antropologia”. Mas, sem querer, dá razão ao presidente americano. Porque é exatamente isso que Trump e J.D.Vance defendem: que a Europa assuma a responsabilidade pela sua segurança, sem contar com a eterna ajuda financeira dos Estados Unidos. O jogo mudou, e a torneira fechou.

“Vou dizer outra coisa que é muito impopular: não basta aumentar o orçamento da defesa. Também é necessário fazer com que mais jovens se alistem no serviço militar. (...) O que estou dizendo é que não se trata apenas de aumentar os gastos com defesa, o que vai implicar em sacrifícios dolorosos em nossos gastos sociais. Também vamos precisar de mais pessoas dispostas a servir. (...) Acho que não podemos excluir a possibilidade de recrutamento obrigatório. Vejamos o caso do Reino Unido. O primeiro-ministro (Keir) Starmer disse recentemente que queria enviar tropas britânicas para a Ucrânia, mas todos os especialistas militares disseram que o país não tem tropas suficientes.

Aqui, eu já acho que os jovens lacradores da Europa Ocidental vão discordar de Ignatieff. Apoiar a continuidade da guerra nas redes sociais é fácil. Outra coisa é se alistar e correr o risco de ser enviado para o front, como carne de canhão. Outra coisa: enquanto quem está morrendo são jovens ucranianos, ninguém se importa muito; mas quando chegarem os primeiros caixões com soldados franceses e ingleses, o sentimento certamente vai mudar.

Estamos assistindo ao fim da ordem internacional que vigorou desde o final da Segunda Guerra, somos testemunhas oculares da História

“Deve ser acrescentado um elemento muito importante: a fadiga em relação ao custo do império, e o desejo de repassar essa conta para os aliados. Os EUA estão cansados de suportar esses fardos econômicos, e o que estão fazendo com a Europa hoje, certamente vão fazer com a Ásia amanhã. Em breve, Trump vai se dirigir aos taiwaneses, sul-coreanos e japoneses, e dizer a eles: por que estamos gastando tanto dinheiro para defendê-los? E assim vai ser com todos os sistemas de aliança que os EUA mantêm desde 1945.”

Sim, é isso mesmo. Estamos assistindo ao fim da ordem internacional que vigorou desde o final da Segunda Guerra, somos testemunhas oculares da História. Mas não se trata apenas de fadiga: é matematicamente impossível e economicamente inviável, para os Estados Unidos, continuar arcando com esses custos.

Trump sabe que precisa reverter a trajetória da dívida do seu país e fazer cortes radicais no orçamento, começando pelos gastos militares. Não dá mais para bancar guerras alheias, muito menos para defender países que hoje perseguem opositores, anulam eleições na Justiça, defendem a censura e colocam na prisão gente que ousa rezar em público contra o aborto ou criticar a imigração descontrolada nas redes sociais.

Como disse J.D.Vance em seu histórico discurso em Munique, o maior inimigo da Europa não é a China nem a Rússia, é a ameaça que vem de dentro: o recuo da Europa em alguns de seus valores mais fundamentais. A Europa precisa fazer uma escolha.

Vladimir Putin quer claramente restabelecer a esfera de influência que a extinta União Soviética conquistou após a conferência de Yalta em 1945. Ele vai querer recuperar o quintal que tinha na Europa Oriental.  (...) Se a proteção da Otan desaparecer, todos esses países (da Europa Oriental) vão voltar, mais cedo ou mais tarde, para a esfera de influência russa, e sua soberania e segurança nacionais serão comprometidas.

Neste ponto, Sachs e Ignatieff discordam radicalmente. Sachs considera essa tese do expansionismo russo infantil e delirante. O que a Rússia pede, segundo Sachs, é a neutralidade da Ucrânia, para evitar ter mísseis da OTAN apontados para ela, na fronteira entre os dois países.

Quem ameaça quem? Depende do ponto de vista.

Putin enxerga a expansão da OTAN como uma ameaça existencial – e reage a esta ameaça. Armas avançadas e tropas da aliança militar estão cada vez mais próximas do território russo, o que reduz o tempo de resposta de Moscou em caso de um conflito, aumentando a vulnerabilidade do país.

A presença de bases militares em países vizinhos é vista como um risco direto. Por isso Putin exige que a Ucrânia permaneça neutra, por ser uma região geograficamente estratégica, e não aceita que ela se torne parte de uma aliança militar adversária. Ele alega que a aproximação da Ucrânia à OTAN foi uma das causas da invasão do país em 2022.

Por outro lado, a guerra é dolorosa para os dois países: mesmo com a farta ajuda que recebe em dinheiro e armamentos, Zelensky não tem condições de vencer; mas também é verdade que Putin tampouco conseguiu derrotar a Ucrânia, após três anos de conflito. Se a Rússia não conseguiu derrotar sequer a Ucrânia, conseguiria atrair para sua esfera de influência países mais ricos, mais armados e mais distantes? Difícil acreditar nisso.

O que percebo aqui é um viés de percepção: muitas pessoas associam de forma automática a situação atual na Ucrânia à da Europa de 1938, quando a Inglaterra demorou a impor limites a Hitler. Mas, mesmo sendo um ditador, Putin não é Hitler, nem muito menos Zelensky é Churchill. São contextos muito diferentes. O risco maior, inclusive para a Ucrânia, parece estar na continuidade dessa guerra por procuração. Mas só o tempo vai dizer.

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