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Série russa explora a relação entre robôs e seres humanos
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O futuro mudou muito desde que Isaac Asimov enunciou as três leis da robótica, em 1942, em um dos contos de “Eu, robô”. Pode-se dizer que, como profeta, o escritor falhou miseravelmente, já que pouco do que ele previu aconteceu. A ciência acabou seguindo rumos bastante diferentes do que ele imaginou na época do lançamento do livro, e um mundo povoado por robôs com características humanas continua sendo um cenário restrito à ficção científica.

Nessa seara, permanece como exemplo insuperável o romance “Do androids dream of electric sheep?”, de Philip K.Dick, lançado em 1968, que serviu de base para o já clássico filme “Blade runner”, de Ridley Scott (de 1982). Mas volta e meia alguém revisita o tema, como fez a HBO na recente adaptação de “Westworld”, originalmente um longa-metragem (de 1973), para o formato de série.

Quem leu "Eu, robô" sabe que as três leis da robótica foram criadas para proteger os seres humanos, funcionando como preceitos, barreiras intransponíveis para máquinas desprovidas dos limites impostos por uma consciência moral:

  1. Um robô não pode ferir um ser humano ou, por inação, permitir que um ser humano sofra algum mal;
  2. Um robô deve obedecer às ordens que lhe sejam dadas por seres humanos, exceto quando tais ordens entrarem em conflito com a primeira lei;
  3. Um robô deve proteger sua própria existência, desde que tal proteção não se choque com a primeira ou a segunda lei.

De forma original e engenhosa, “Better than us”, série em 16 episódios produzida pela televisão estatal russa e comprada pela Netflix, atualiza as questões éticas e científicas levantadas nos contos de Asimov. Em um futuro não muito distante (2029), em Moscou, robôs humanoides fazem parte do cotidiano, substituindo seres humanos em diversas atividades, como as tarefas domésticas, ou mesmo no sexo.

Algumas questões são banais (é possível ter um relacionamento afetivo com um robô? Se uma pessoa casada transar com um robô, estará cometendo adultério?). Outras são mais complexas profundas (é psicologicamente aceitável compensar a ausência de um filho morto por um androide idêntico a ele?). Mas, no fim das contas, todas convergem para mesma pergunta: o que significa ser humano?

Assista abaixo ao trailer oficial da série “Better than us”:

Os personagens humanos principais são Viktor Toropov, empresário inescrupuloso que fabrica robôs cada vez mais sofisticados, e Safronov, médico divorciado com uma filha pequena, Sonya. Viktor importa de forma clandestina uma robô não certificada de fabricação chinesa (tinha que ser), Arisa, para usá-la como protótipo de uma nova geração de androides. Originalmente produzida para fins sexuais (daí sua saia minúscula e sua sensualidade extrema), a robô tem um software de última geração, que lhe permite reconhecer emoções e desenvolver conexões que simulam laços afetivos e familiares.

As coisas saem do controle quando Arisa – interpretada pela bonita modelo Paulina Andreeva – mata um segurança por acidente e foge de Cronos, a fábrica de robôs de Toropov. Quando a menina Sonya (a atriz mirim Vita Kornienko, excelente) encontra a androide e a leva para casa, tem início uma trama que acrescenta à ficção científica elementos de suspense e drama familiar. Entre os diversos subplots estão uma conspiração corporativa, um romance adolescente, um protagonista angustiado que tenta salvar seu casamento, um policial obstinado, ativistas tecnofóbicos (os “Liquidantes”) etc.

São três os núcleos principais, perfeitamente entrelaçados: a relação de Arisa com a família que a adota (ou que ela adota); o envolvimento de Egor, filho adolescente de Efranov, com rebelde Zhanna e, por extensão, com os Liquidantes; e os conflitos de Victor com sua mulher, deprimida desde a morte do filho único, em meio a planos para o desenvolvimento de uma nova geração de robôs. Sem espalhafato nem efeitos especiais exuberantes, a narrativa de “Better than us” está mais interessada nos conflitos interpessoais que na ostentação dos clichês da ficção científica – os signos futuristas existem, mas são sempre discretos, sutis e funcionais.

Bem superior a séries similares, como a sueca “Real Humans” e a britânica “Humans”, “Better than us” tem uma narrativa cheia de subtextos sutis sobre a sociedade russa, proporcionando ao espectador farto material para reflexão. É perfeitamente satisfatória como ficção científica, mas é uma série calcada nas relações humanas (ou quase humanas). Todos os personagens têm vidas em alguma medida disfuncionais: Safronov é um pai ausente e carregado de culpa, Toropov é um péssimo marido. O detetive Borisovich, que investiga crimes cibernéticos, sequer tem família. Nesse contexto, a determinação de Arisa de proteger Safronov e Sonya a qualquer preço chega a despertar a simpatia do espectador: ela é, de certa forma, mais humana que eles.

Um grande mérito de "Better than us" é justamente evitar o maniqueísmo frequente no gênero (como em “Battlestar Galactica”): apesar de ter um defeito de fabrcação que a predispõe a matar (contrariando as leis da robótica), Arisa não é apresentada como uma vilã, ao contrário: ela é um personagem ambígua, capaz de confundir e envolver o espectador por seus conflitos interiores, sua sensibilidade quase-humana, sua lealdade e seu crescente afeto pela família de Safronov. .

Outra boa sacada da série é o movimento ativista anarco-conservador dedicado a destruir robôs, com o argumento de que eles corrompem e ameaçam a sociedade. Os Liquidantes promovem protestos assustadores, sequestram androides, arrancam seus chips e os enforcam em praça pública, gritando slogans do tipo “Morte aos robôs, vida aos vivos!” Outra questão é a ameaça aos empregos humanos: o governo russo planeja impor a aposentadoria compulsória aos 40 anos, já que robôs não tiram férias nem se organizam em sindicatos. (Pensando bem, isso não seria tão ruim).

Paulina Andreeva interpreta Arisa, uma robô quase humana<br />
Paulina Andreeva interpreta Arisa, uma robô quase humana

Escrevi no começo que Asimov falhou em suas previsões de uma aproximação crescente entre humanos e robôs. Mas talvez não. Por caminhos tortos, um tipo de robô acabou dominando a sociedade: as pessoas desprovidas de consciência crítica, de discernimento moral e até mesmo da capacidade de interpretar textos. Ou seja, no mundo real a aproximação se deu não pela humanização dos robôs, mas pela robotização dos seres humanos, submetidos durante décadas a diferentes processos de doutrinação, ao projeto de emburrecimento deliberado que leva à automatização de seus pensamentos e emoções.

Não foram as máquinas que se tornaram cada vez mais parecidas com os homens, mas os homens que se afastaram cada vez mais de sua natureza humana, transformando-se em robôs. Pior ainda: robôs que não respeitam as leis da robótica e desconhecem as noções de certo e errado. No fim das contas, talvez a ameaça real não esteja no fato de robôs se tornarem melhores que nós, mas no fato de que nós, humanos, estamos nos tornando piores que eles.

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