Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Luciano Trigo

Luciano Trigo

Democracia relativa

Servidão voluntária, versão brasileira

A tirania se sustenta pelo consentimento dos oprimidos. O Brasil prova a tese de La Boétie: há quem prefira a servidão ao risco de ser livre. (Foto: Aline Menezes com Chat GPT)

Ouça este conteúdo

Um dos mais provocativos ensaios políticos da História do pensamento ocidental foi escrito no século 16, por um jovem de apenas 18 anos, Étienne de La Boétie (1530-1563). No “Discurso da servidão voluntária”, ele formulou uma tese de desconcertante atualidade: os tiranos não se mantêm no poder pela força das armas, mas pelo consentimento tácito dos oprimidos. Essa submissão não é imposta; ao menos em parte, ela é escolhida, ainda que de forma inconsciente.

A tese é mais psicológica do que política: a opressão se perpetua não porque o tirano seja onipotente, mas porque os indivíduos abdicam, deliberadamente, de sua responsabilidade moral e se entregam à servidão - por medo, indiferença ou até por entusiasmo:

“Coisa realmente admirável, porém tão comum, que deve causar mais lástima que espanto, é ver um milhão de homens servir miseravelmente e dobrar a cabeça sob o jugo, não que sejam obrigados a isso por uma força que se imponha, mas porque ficam, por assim dizer, enfeitiçados somente pelo nome de um, que não deveriam temer, pois ele é um só, nem amar, pois é desumano e cruel com todos.”

Quase cinco séculos depois, o Brasil oferece uma ilustração quase perfeita do diagnóstico de La Boétie. Sob o pretexto de combate a discursos de ódio, fake news ou ameaças à democracia - expressões vagas, elásticas, aplicadas de forma arbitrária por instâncias de poder cada vez mais concentradas - liberdades civis vêm sendo sistematicamente corroídas, enquanto a censura avança em nome de um bem difuso.

A democracia é usada como pretexto para suprimir a própria liberdade democrática. Aumento da vigilância estatal, limitações à liberdade de expressão e excesso de regulamentações têm reduzido sistematicamente o espaço para o dissenso. Instituições que deveriam garantir os direitos do cidadão se tornaram instrumentos de controle e punição.

Mas a maior parte da população parece não perceber que está vivendo sob um regime cada vez mais autoritário - ou, o que é pior: percebe e aceita. Tratei desse tema, aliás, no artigo "E se as pessoas não quiserem ser livres?"

La Boétie afirma que o hábito de obedecer leva à perda da própria consciência da liberdade: o homem nasce livre, mas se acostuma à servidão ao ponto de vê-la como um aspecto natural da vida. Isso também é visível no Brasil de hoje: a censura e a perseguição não provocam qualquer comoção, e o controle das redes sociais é visto por muitos como uma forma legítima de moderação.

A pergunta que se impõe é: como chegamos a esse ponto sem que houvesse uma indignação proporcional à gravidade das perdas? Essa passividade, segundo La Boétie, pode ser explicada por diversos fatores, como o costume, o medo, a manipulação e a fragmentação social.

O costume de aceitar a intervenção estatal, o medo de represálias e a manipulação da opinião pública criam em nosso país um ambiente de apatia difícil de reverter. A população parece ter se acostumado a certas formas de controle. Décadas de intervenção governamental em diversas esferas da vida criaram uma mentalidade de dependência.

Ao mesmo tempo, programas sociais, embora necessários em muitos casos, são frequentemente usados como ferramentas políticas, condicionando a população a aceitar restrições em troca de benefícios. Essa dependência leva à aceitação de medidas autoritárias.

VEJA TAMBÉM:

Quando o povo prefere o conforto da obediência à incerteza da liberdade, ele se torna cúmplice da sua própria escravidão

O medo é outro pilar da servidão voluntária. No Brasil, o discurso do medo é constantemente explorado para justificar medidas restritivas e silenciar os críticos. A narrativa de que a liberdade de expressão pode desestabilizar a democracia, ou que protestos representam ameaças à ordem, cria um ambiente no qual a população passa a temer exercer seus direitos. O medo de retaliações - jurídicas, sociais ou profissionais - reforça os grilhões.

Complementa esse cenário o papel vergonhoso da grande mídia, que contribui para apagar da consciência dos brasileiros a própria memória da liberdade. Este é um dos argumentos mais poderosos de La Boétie: ao se costumarem com a servidão, as pessoas esquecem o que é ser livre.

No Brasil, a história de regimes autoritários, como a última ditadura militar, deveria servir como lembrete dos perigos da concentração de poder. Mas a falta de educação cívica e o desconhecimento da História levam muitos a subestimar a importância das liberdades individuais, sobretudo nas novas gerações, que passam a naturalizar restrições à liberdade.

Além disso, a dependência do Estado se aprofundou. La Boétie argumenta que pessoas acostumadas à submissão aceitam grilhões em troca de segurança ou pequenos benefícios.

Ora, milhões de brasileiros de todas as classes dependem, direta ou indiretamente, de auxílios públicos, subsídios, contratos, emendas, nomeações. É toda uma rede de aliados que lucram com a opressão e sustentam a tirania. E essa estrutura clientelista transforma o cidadão em súdito.

Isso se manifesta em diferentes grupos de interesse, que se beneficiam de políticas públicas específicas, e nas elites políticas, que perpetuam sua influência por meio de alianças. Essa rede cria uma camada de indivíduos que, mesmo cientes das restrições às liberdades, preferem manter as coisas como estão, para preservar seus privilégios.

A corrupção endêmica, ainda que combatida em alguns momentos, reforça essa dinâmica, com muitos cidadãos aceitando-a como um aspecto do nosso caráter nacional.

Além disso, a fragmentação social – intensificada pela polarização e pela desigualdade – impede a formação de um movimento unificado. Muitos brasileiros, sobrecarregados por preocupações econômicas, priorizam a sobrevivência imediata, em detrimento da luta por liberdades abstratas.

A indignação, quando surge, é tímida, restrita a algumas bolhas. A maioria prefere não ver, não saber, não se envolver. Alguns se iludem com a promessa de que a repressão se dirige a penas a extremistas. Outros se comprazem com a perseguição aos seus adversários. Tudo isso acontecia já no século 16.

Apesar do pessimismo, La Boétie conclui o "Discurso sobre a servidão voluntária" com um comentário que deveria servir de alento: não é preciso violência ou revolução sangrenta para derrubar a tirania. Basta que o povo deixe de obedecer:

“Não é preciso combater nem derrubar esse tirano. Ele se destrói sozinho, se o país não consentir com sua servidão. Nem é preciso tirar-lhe algo, mas só não lhe dar nada. (...) São, por conseguinte, os próprios povos que se deixam, ou melhor, que se fazem maltratar, pois estariam livres se parassem de servir. É o próprio povo que se escraviza e se suicida quando, podendo escolher entre ser submisso ou ser livre, renuncia à liberdade e aceita o jugo; quando consente com seu sofrimento, ou melhor, o procura”.

Essa resistência, contudo, exigiria coragem e virtude cívica — qualidades que a servidão voluntária procura, justamente, enfraquecer.

Em todo caso, a lição de La Boétie é clara: a tirania se alimenta do silêncio e da passividade. Quando o povo prefere o conforto da obediência à incerteza da liberdade, ele se torna cúmplice da sua própria escravidão.

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.