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Sobre ratos e homens
| Foto: Divulgação

Entre as muitas representações do povo judeu como ratos promovidas pelo Nazismo, destaca-se o documentário O judeu eterno, de 1940. O filme registra o cotidiano no gueto de Lodz, na Polônia ocupada, de maneira a convencer o espectador de que os judeus são responsáveis por todas as desgraças do mundo, uma sub-raça de parasitas e trapaceiros que merece ser exterminada da face da Terra.

O documentário apresenta os judeus como ratos que transmitem doenças contagiosas e se apropriam dos recursos dos alemães. O filme é tão nojento na desumanização do povo judeu que sua exibição é até hoje proibida na Alemanha e em diversos países europeus.

O antissemitismo não morreu. Mais de 80 anos depois de O judeu eterno, o Governo alemão se vê obrigada a proibir manifestações de apoio aos atos terroristas cometidos por um grupo que odeia os judeus e cujo objetivo declarado é varrer Israel do mapa.

Como relata esta matéria, na noite do massacre dezenas de pessoas foram às ruas no bairro de Neukölln, em Berlim, para festejar o assassinato de centenas de civis israelenses pelo Hamas - incluindo mulheres, idosos e crianças. “Exibindo bandeiras palestinas, membros do grupo entoaram cânticos contra Israel e distribuíram doces para os participantes em uma área da capital alemã que conta com uma comunidade muçulmana significativa”.

“Isso é desprezível, é desumano e contradiz todos os valores com os quais estamos comprometidos como nação. Não aceitaremos o ódio e o incitamento sem agirmos. Não toleramos o antissemitismo", declarou o Chanceler alemão Olaf Scholz.

Ou seja, até mesmo no berço do Nazismo e do Holocausto se entende hoje que não há justificativa possível para celebrar o ataque covarde e selvagem contra civis engendrado pelo Hamas. Festejar estupros a céu aberto e assassinatos de idosos e bebês ultrapassa qualquer limite, mesmo para quem não tem padrões morais muito elevados.

Cartaz do documentário nazista "O eterno judeu", de 1940
Cartaz do documentário nazista "O eterno judeu", de 1940

Mas, nas redes sociais, nas salas de aula e no noticiário da TV, não falta quem apoie publicamente, sem qualquer pudor, o medonho ataque terrorista. Na cabeça de muita gente, basta um argumento – “Ah, mas Israel oprime os palestinos na Faixa de Gaza...”  – para aderir à barbárie com um entusiasmo feroz.

Muitas dessas pessoas são as mesmas que batem no peito para defender a censura e a perseguição em nome da defesa da democracia; são as mesmas, também, que não hesitam em classificar como terroristas até donas de casa envolvidas na baderna do 8 de janeiro – mas não o Hamas.

Para essas pessoas, estar do “lado certo” justifica tudo e autoriza tudo, até mesmo incendiar bebês e cortar suas cabeças. No fundo, são soldados: se o comando que vem de cima é apoiar o Hamas e jogar em Israel e culpa pelo massacre de civis israelenses, é isso que fazem, sem pestanejar. Da mesma maneira que o alemão comum obedecia, sem pestanejar, ao comando de odiar os judeus, na Berlim da década de 1930. Nós já vimos esse filme, e ele não acabou bem.

A guerra entre Israel e o Hamas está servindo para explicitar esse processo assustador, porque aqui ele se torna quase caricato. Mas, no fundo, é o mesmo fenômeno que se manifesta cotidianamente no Brasil, quando parte da população acha muito natural perseguir, cancelar, censurar e até prender adversários políticos com base em crimes de opinião.

É o velho truque da desumanização do adversário, necessária para que se possa persegui-lo sem culpa. Destituir o inimigo da própria condição de ser humano legitima o ódio e o extermínio.

Mesmo o estudante com um mínimo de neurônios e de caráter pensa: esse professor que chama todo mundo de nazista está me dizendo que é certo apoiar o terrorismo e a destruição de Israel?

Muito se tem feito para demonizar brasileiros comuns, honestos, que estudam e trabalham mas cometem o crime de discordar. Na cultura do autoritarismo progressista e do pensamento único que se implantou no Brasil, ou você concorda integralmente e incondicionalmente com as opiniões “certas” sobre os mais variados temas – do aborto ao uso de drogas, da infalibilidade das vacinas à infalibilidade das urnas, dos benefícios do mercado de carbono na Amazônia aos diferentes ativismos identitários – ou você corre o risco de ser estigmatizado e perseguido como um judeu na Alemanha nazista.

Exercer a liberdade de expressão virou comportamento de risco. Dependendo da sua opinião, você será reduzido a um estereótipo pejorativo, será desmoralizado e igualado a um rato – não com base em religião ou etnia, mas com base no que você pensa e acredita. Porque é assim que funciona em tempos de democracia relativa e de terrorismo do bem.

Tenta-se repetir a mesma dinâmica no caso do ataque terrorista a Israel, mas o truque aqui adquire contornos tão grotescos que o mecanismo fica exposto. Por mais que o professor diga em sala de aula que o certo é apoiar o Hamas, mesmo o estudante com um mínimo de neurônios e de caráter pensa: esse professor que chama todo mundo de nazista está me dizendo que é certo apoiar o terrorismo e a destruição de Israel? É isso mesmo?

Pois bem, no final dos anos 70, perguntaram ao novo líder supremo da China, Deng Xiaoping – responsável pelas medidas de liberalização da economia que tiraram seu país da imensa pobreza comunista – se as reformas de inspiração capitalista que ele queria promover não agrediam o ideário político comunista. Foi nesse contexto que, explicando seu objetivo de enriquecer o país, Xiaoping respondeu: “Não importa a cor do gato, desde que ele cace os ratos”.

Na semana que passou, a frase de Deng Xiaoping foi “ressignificada”: citada como um ditado chinês, ela foi usada para justificar o apoio ao massacre de israelenses pelo Hamas. Como existem pessoas que sabem o que foi o Holocausto e ainda são capazes de se horrorizar com o antissemitismo, esta nova associação entre judeus e ratos em pleno século 21 viralizou e provocou muitas reações indignadas. Ainda bem.

Mas não houve retratação alguma, ao contrário: a mesma turma que encontrou na censura, no cancelamento e na perseguição dos adversários uma razão de viver partiu em defesa da postagem – e ainda acionou a ABI – Associação Brasileira de Imprensa, pedindo providências contra um jornalista que a criticou. Nessa altura dos acontecimentos, já está mais do que claro o duplo padrão: discurso de ódio só é crime quando se está do lado “errado”.

P.S. Eu ia escrever sobre a história em quadrinhos “Maus”, de Art Spiegelman, da qual foi tirada a imagem que ilustra este artigo. “Maus” também fala sobre a equiparação dos judeus a ratos e ganhou o Prêmio Pulitzer em 1992. Mas acabou não sobrando espaço, fica para outra ocasião.

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