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“Succession” mostra coisas que acontecem nas melhores famílias
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Vencedora de vários prêmios e já em sua segunda temporada, “Succession”, da HBO, é uma série sobre a lealdade, o poder do dinheiro e o amor ao poder. Já em idade avançada, Logan Roy (Brian Cox) é o patriarca de uma família riquíssima, dona de um conglomerado, a Waystar Royco, que inclui canais de TV paga, uma rede de TV aberta, estúdios de cinema e parques temáticos. O império familiar passa por uma fase de transição e adaptação a novos tempos – qualquer semelhança com a família de Rupert Murdoch, o magnata da News Corp, pode não ser mera coincidência.

Quando Logan tem um AVC, a expectativa de antecipação da sua aposentadoria dá início a uma rede de intrigas que envolve seus quatro filhos adultos, cada qual com traumas pessoais, fragilidades emocionais, agendas e motivações diferentes. Pelo menos desde “Rei Lear”, disputas por poder e dinheiro em linhas sucessórias são coisas que acontecem (especialmente, aliás) nas melhores famílias. Mas “Succession” explora esse tema de forma extremamente engenhosa. Bem-sucedida na difícil combinação entre sátira e drama, entre situações engraçadas e sombrias, entre a comédia e a tragédia, a série não foi muito comentada no Brasil, mas nos Estados Unidos é uma das mais elogiadas pela crítica especializada: ganhou dois prêmios no Globo de Ouro 2020, incluindo o de Melhor Série de Drama, desbancando as favoritas “Big Little Lies” e “The Crown”.

Criada pelo roteirista britânico Jesse Armstrong, “Succession” é muito mais que uma história de disputa pelo controle de um império da mídia. As traições e conspirações no seio da família Roy são apenas o pretexto para um estudo profundo e cheio de nuances sobre relacionamentos humanos, nos quais invariavelmente os interesses prevalecem sobre os afetos.

Cada personagem tem seus segredos e excentricidades. O patriarca Logan lida com sua resistência a “passar o bastão”, além de sentir um prazer sádico em testar a competência e a lealdade dos filhos. Estes são igualmente cínicos, amorais e inescrupulosos – mas também, à sua maneira, afetuosos e sensíveis, capazes de despertar a empatia do espectador. Eles são, de certa forma, a ilustração de que dinheiro não traz felicidade (especialmente quando é pouco, mas também quando é em demasia): famílias muito ricas e disfuncionais são muito mais frequentes do que se imagina. Desde Shakespeare, mais uma vez, o dinheiro compra quase tudo, mas também atrai a cobiça e desperta o que as pessoas têm de pior.

Assista abaixo ao trailer da segunda temporada de “Succession”:

Nas duas temporadas, o enredo está a serviço desse estudo cruel sobre a natureza humana. A direção de atores e a composição dos personagens são esplêndidas, a ponto de reconhecermos cacoetes sutis, típicos de irmãos, nas interpretações de Jeremy Strong (o ambicioso mas inseguro Kendall), Sarah Snook (a desafiadora Shiv) e Kieran Culkin (o iconoclasta Roman; Kieran é irmão de Macaulay Culkin, de “Esqueceram de mim”).

Apesar do menor protagonismo, o filho mais velho de Logan, Connor (Allan Ruck, que quando jovem foi um dos protagonistas de “Curtindo a vida adoidado”), também é rico em ambiguidades e conflitos: ele não se interessa pelos negócios da família, preferindo cuidar de uma fazenda sustentável no Novo México e passar o tempo com uma sugar baby que sonha fazer carreira no teatro.

Kendall, o sucessor mais provável de Logan, tem um histórico recorrente de dependência de drogas, mas ao mesmo tempo é capaz de se dedicar incansavelmente ao plano de passar a perna no pai. O desbocado Roman esconde a insegurança e uma certa ambivalência sexual no temperamento brincalhão, ao mesmo tempo em que assume responsabilidades muito além de sua competência. Shiv pretende fazer carreira na política, fora da aba do pai (mesmo que isso signifique destruí-lo), mas, ao mesmo tempo, aceita que seu noivo e depois marido Tom dirija o ramo de parques temáticos do conglomerado. Outro personagem interessantíssimo é o atrapalhado Greg, sobrinho de Roy, que combina ingenuidade e uma forma peculiar de inteligência.

De certa forma, os filhos de Roy nunca se tornaram adultos: são crianças movidas por impulsos primários, incapazes de conexões genuínas. Em seus piores (ou melhores) momentos, são quase sociopatas, determinados a se destruírem mutuamente. Em suma, são pessoas horríveis em vários aspectos – mas são ótimos personagens. No fundo, todos lutam desesperadamente pela aprovação paterna, ainda que por vias tortas.

Na disputa entre pai e filhos, não importam os custos financeiros ou morais. É um vale-tudo que revela, entre outras coisas, o sentimento de superioridade e impunidade que pode acometer os muito ricos: quando um serviçal morre acidentalmente, Logan comenta o ocorrido dizendo, com cinismo: “NRPI” (“No real person involved”).

Todos os elementos da linguagem narrativa estão organicamente integrados: o inspirado e melancólico tema musical, a qualidade dos diálogos, a fotografia, o uso funcional de técnicas como zoom drops – a câmera que se aproxima subitamente do rosto de um ator no meio de uma cena, nos momentos mais nervosos da trama. Em algumas cenas, aliás, a câmera estava ligada sem que os autores soubessem, reforçando a espontaneidade e o realismo das atuações.   A série é repleta de momentos memoráveis, especialmente nas sequências de reuniões familiares – seja no hospital, em uma despedida de solteiro, em uma conspiração corporativa ou em um casamento. Na segunda temporada, também com 10 episódios de uma hora cada, o foco passa da disputa pelo poder para a necessidade de a família lidar com uma série de escândalos e processos por assédio. Mas os conflitos permanecem. A lição, reiterada a cada episódio, é que a luta de classes acabou e os ricos venceram, mas não são felizes.

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