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Luciano Trigo

Luciano Trigo

Democracia relativa

Tribunais do silêncio condenam à morte em vida

Da Roma antiga às redes sociais: a censura moderna apaga vozes dissidentes sob o pretexto de democracia e combate à desinformação. (Foto: Imagem criada utilizando Chatgpt/Gazeta do Povo)

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Ao longo da História, regimes autoritários têm recorrido à manipulação da memória para controlar a sociedade e se perpetuar no poder. Uma das formas mais perversas desse controle foi o apagamento dos registros dos adversários políticos – não apenas a sua eliminação física, mas também seu desaparecimento das fotografias, dos documentos oficiais, da memória coletiva. A União Soviética de Stálin (1924-1953) foi o caso mais emblemático dessa prática, mas ela existe desde a Roma antiga.

Décadas depois de Stálin, ferramentas digitais e um Judiciário sem limites atualizam essa lógica autoritária: desafetos políticos são silenciados, bloqueados nas redes sociais, desmonetizados, impedidos de falar e ser entrevistados – tudo sob a justificativa da defesa da democracia e do combate à desinformação, ou com o argumento de que suas palavras poderiam comprometer investigações ou perturbar a ordem pública. Mas a democracia que se quer proteger parece cada vez mais esquisita, e muitas vezes indistinguível de um monopólio ideológico.

A censura prévia, que costumava ser considerada inconstitucional, passou a ser legitimada. As novas tecnologias, em vez de garantir a liberdade, estão sendo usadas para restringi-la. A censura, antes manual, agora é algorítmica e judicial. Deixou de ser um traço exclusivo de ditaduras e passou a se apresentar como virtude democrática.

Após consolidar seu poder, Stálin eliminou não apenas fisicamente seus rivais, mas também sua memória. Figuras como Trotsky, Bukharin e Zinoviev, antes líderes proeminentes do Partido Comunista, foram executados ou exilados, e seus nomes e imagens foram removidos de documentos oficiais e livros didáticos. A propaganda oficial apagava todo e qualquer vestígio da existência dos que se tornavam inconvenientes ao regime.

A prática de silenciar e apagar registros de adversários políticos tornou-se um símbolo do controle das ditaduras sobre a narrativa. É o fenômeno da damnatio memoriae, oriundo do direito romano, utilizado para reescrever o passado e eliminar qualquer vestígio de dissidentes ou figuras que caíam em desgraça.

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Na Roma antiga, a damnatio memoriae significava não apenas a exclusão de dissidentes dos registros oficiais, mas também a destruição de retratos, inscrições e qualquer outro vestígio de sua existência, até de estátuas. Era como se a pessoa jamais tivesse vivido. Mais do que uma punição física ou material, tratava-se de uma condenação à inexistência simbólica, à exclusão da memória coletiva.

O que antes exigia martelos e cinzéis, hoje se faz com um clique, mas o objetivo é o mesmo. O silenciamento de vozes dissidentes molda uma narrativa unificada, criando a ilusão de um falso consenso. O critério é muitas vezes moralista, subjetivo e elástico, baseado em uma noção fluida do que é aceitável ou ofensivo.

Na União Soviética, em retratos coletivos, figuras apagadas deixavam sombras inexplicáveis ou áreas grosseiramente retocadas. Um caso notório é uma fotografia de 1920 que mostrava Lenin discursando em Moscou, com Trotsky e Kamenev ao fundo. Quando Trotsky caiu em desgraça, foi apagado da imagem. Mas sua sombra continuou assombrando.

A prática se estendia aos livros, jornais e filmes. Personagens históricos desapareciam das novas edições, enquanto as antigas eram recolhidas. Enciclopédias como a Grande Enciclopédia Soviética recebiam atualizações para substituir artigos sobre figuras banidas por narrativas que exaltavam Stálin ou outros líderes leais.

Essa manipulação tinha um objetivo claro: controlar a narrativa histórica e consolidar o culto à personalidade de Stalin, eliminando qualquer evidência de oposição. A História se tornava, assim, uma construção plástica, subordinada aos interesses de quem estava no poder.

Toda sociedade que permite o silenciamento de vozes em nome da ordem está preparando o próprio silêncio. Uma vez caladas as vozes dissidentes, o que resta são apenas ecos do poder

Quando o indivíduo não pode confiar na sua própria memória ou em documentos públicos, fica mais vulnerável ao discurso oficial. O controle da informação molda a percepção pública, garantindo a hegemonia do regime na base do medo.

Avancemos para o século 21. A prática de bloquear perfis em redes sociais e proibir adversários políticos de dar entrevistas reflete uma tentativa de controlar a narrativa pública, semelhante ao apagamento soviético. Só mudam as ferramentas: em vez de fotografias físicas e textos em papel impresso, lidamos hoje com plataformas digitais, algoritmos e redes sociais.

Em vez de retocadores de imagens do partido, temos moderadores, "fact checkers”, decisões judiciais e termos de uso que ninguém lê. No lugar dos fuzilamentos, temos o ostracismo digital e a interdição legal do discurso.

Ora, no Brasil e no mundo redes sociais como X são hoje arenas centrais para o debate político. Bloqueios ordenados por decisões judiciais, ou implementados por plataformas sob pressão, têm o efeito evidente de calar, constranger e amedrontar.

Quando um perfil some das redes, quando uma entrevista é cancelada, quando um trecho de vídeo desaparece, quando um jornal é coagido a não publicar — estamos diante de uma nova forma de apagamento. A imagem do desafeto do poder desaparece da praça pública digital, e, com ela, seu direito de existir como voz política.

Essa exclusão do espaço midiático limita a pluralidade de vozes no debate público, criando uma narrativa unificada que favorece certos atores políticos. Assim como a manipulação stalinista, essas proibições tentam moldar a percepção pública, eliminando opiniões críticas.

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Apenas narrativas convenientes têm direito à existência. Cria-se, assim, um ambiente de autocensura, no qual jornalistas e pessoas comuns evitam abordar temas polêmicos, por medo de represálias.

Essas práticas, implementadas sem maior resistência social, distorcem a memória coletiva e limitam o debate público, comprometendo a capacidade da sociedade de compreender seu passado e seu presente.

Talvez o aspecto mais inquietante de tudo isso não seja a repressão em si, mas a passividade com que parte da sociedade assiste à crescente erosão da liberdade de expressão e outros direitos. Porque é a indiferença ao destino dos censurados o que permite que a censura se naturalize.

Se alguém é silenciado e ninguém se incomoda, quem será o próximo? Quando perceberemos que a liberdade de expressão não existe para proteger apenas os que dizem o que gostamos de ouvir – mas, sobretudo, os que dizem o que nos incomoda?

Toda sociedade que permite o silenciamento de vozes em nome da ordem está, sem saber, preparando o próprio silêncio. Porque, uma vez caladas as vozes dissidentes, o que resta são apenas ecos do poder. O que se busca, no fundo, é a criação de uma realidade artificial, controlada, higienizada, onde não há lugar para o dissenso.

A História nos ensina que o apagamento de vozes é um passo perigoso rumo à perda da liberdade. Silenciar os opositores, apagar seus registros e impedi-los de ocupar o espaço público representa uma sentença de morte em vida. Mas a morte em vida pode levar também à criação de mártires em vida, com consequências imprevisíveis.

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