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Um poeta russo e a ideologia da felicidade
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Uma das muitas patologias sociais do nosso tempo é a disseminação da ideia de que a felicidade é o objetivo supremo da vida e, mais que isso, um direito que cabe a todos e a cada um, independentemente do mérito e do esforço pessoal. Um direito que se deve cobrar não apenas dos outros (pais, amigos, até mesmo estranhos), mas também do Estado. Se sou infeliz e fracassado, a culpa não é minha: eu sou vítima de um mundo cruel que não me deixa ser feliz e bem-sucedido como eu mereço – cabendo, portanto, aos outros e ao governo reparar essa injustiça.

Trata-se, evidentemente, de uma falácia.

Primeiro, porque existem coisas na vida mais importantes que a felicidade - e sem as quais, aliás, a felicidade é impossível. Por exemplo, a liberdade: quem abre mão de ser livre dificilmente será feliz. A escravidão voluntária que muita gente escolhe alegremente é receita certa para uma vida que, mais cedo ou mais tarde, se revelará infeliz.

(Abrindo aqui um longo parêntese: consagrado no início da década de 30 como um dos maiores poetas russos de seu tempo, Óssip Mandelstam, o cidadão da foto que ilustra este artigo, tinha tudo para ser feliz.

Jovem e famoso, nas circunstâncias e no ambiente em que ele vivia bastaria aderir à ditadura comunista de Stálin para ter uma vida fácil e confortável. Preferiu escrever um poema satírico confrontando o “ditador de bigodões de barata” e “assassino de camponeses”, em 1934.

O poema sequer foi publicado, mas a mera notícia de sua existência bastou para que Mandelstam fosse preso, e seus livros censurados. Solto, comeu o pão que o diabo amassou até ser preso novamente, em 1937.

Condenado a cinco anos de prisão por crime de opinião e atividades contra-revolucionárias, ele nem teve tempo de cumprir a pena: morreu no ano seguinte de tifo, aos 47 anos, em um campo de trabalhos forçados.

Durante décadas, foi proibido citar seu nome na União Soviética. Mandelstam virou uma “não-pessoa”, no sentido orwelliano do termo, até ser reabilitado nos anos 80 do século passado.

Li em algum lugar que, no breve período de liberdade entre as duas prisões, Óssip Mandelstam foi interpelado por sua mulher Nadezha, também poeta, que lamentou as precárias condições em que o casal passou a viver desde que ele escreveu o poema fatídico. “Antes éramos felizes”, ela teria dito, em tom de lamúria. Ele respondeu: “Mas quem diabos te disse, criatura, que você tem o direito de ser feliz?”

Naturalmente, Mandelstam quis dizer com isso que não se pode colocar a felicidade acima das noções de certo e errado. A aspiração de ser feliz não pode se sobrepor ao dever de fazer o que é correto, caso contrário tudo poderá ser justificado: roubar, corromper, perseguir, censurar, até matar o outro, se eu o enxergar como adversário, devedor ou obstáculo à minha felicidade.

Ser vítima virou um estilo de vida, uma razão de viver e até uma fonte de renda, em muitos casos: estranha forma de ser feliz

Esta é a característica fatal de quem acredita em utopias, como escreveu Isaiah Berlin: se eu tenho certeza do melhor modo de conduzir a sociedade para a paz, a justiça social, em suma, para a felicidade, que preço pode ser considerado muito alto?

Hoje, se eu estou do lado certo, estou moralmente autorizado a (e as redes sociais me deram os meios para) censurar, perseguir e esfolar quem discordar de mim politicamente, ou quem eu enxergar como fascista: Stálin matou foi pouco! Não se faz uma omelete sem quebrar os ovos! Se olho para os lados ou leio o noticiário, vejo isso acontecer quase que diariamente.

O paradoxo é que a censura, a perseguição e o esfolamento não partem do governo, mas da virtuosa resistência que pratica o ódio do bem e defende a democracia de um lado só. Na peculiar “ditadura turbo tecno macho nazifascista” brasileira, quem é preso por liberdade de opinião são aqueles que defendem o governo. O Brasil é mesmo um caso de estudo. Fecho aqui o longo parêntese.)

Segundo, porque a felicidade em si nunca foi e nunca será um direito, até porque o que é felicidade para uns é sofrimento para outros. Nesse terreno, o máximo a que cada indivíduo pode aspirar é ter condições e oportunidades para tentar ser feliz – condições e oportunidades que ele nem sempre saberá aproveitar.

Já escrevi sobre esse tema no artigo “A felicidade é um direito?”. Volto ao assunto porque um livro bem interessante acaba de ser lançado no Brasil pela editora Ubu: "Happycracia – Fabricando cidadãos felizes”, coautoria do psicólogo espanhol Edgar Cabanas e da socióloga marroquina Eva Illouz.

De forma provocativa, mas bastante sensata, os autores fazem uma análise crítica da gênese e do desenvolvimento da “psicologia positiva”, corrente pseudocientífica muito em voga, capitaneada pelo psicólogo Martin Seligman (autor de best-sellers como “Florescer” e “Aprenda a ser otimista”), segundo a qual a felicidade é o único objetivo da vida, a única régua pela qual devemos julgar nossas existências.

Segundo Cabanas e Illouz, a felicidade passou a ser vendida como o “resultado do treino de nossa força interior e nosso eu autêntico; a única meta que faz a vida valer a pena; o padrão pelo qual devemos medir o valor de nossa biografia; o tamanho de nossos sucessos e fracassos; e a magnitude de nosso desenvolvimento psíquico e emocional".

Trata-se de um livro de autoajuda às avessas, já que tenta convencer o leitor de que tentar ser feliz a qualquer custo simplesmente não funciona. Prosseguem os autores: “Mais que um valor, um sentimento ou uma forma de avaliar um percurso de vida, a felicidade torna-se uma cultura que transforma cada pessoa em uma empresa autogerida, orientada para a maximização de ganhos”.

Tudo isso faz sentido, embora em alguns momentos os autores, ao condenarem a ideologia da felicidade, pareçam não se dar conta de que atualmente existe outra ideologia igualmente funesta: a ideologia do fracasso e do vitimismo. Ser vítima virou um estilo de vida, uma razão de viver e até uma fonte de renda, em muitos casos. Estranha forma de ser feliz.

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