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Não tem outro jeito: eles decidirão o que é verdade e o que é mentira. Eles decidirão o que é democrático e o que é antidemocrático. Eles decidirão os conteúdos a que terão acesso na internet os brasileiros, sempre tão desprotegidos e expostos. Não teremos censores, não se trata disso; eles amam a liberdade... Para nos proteger, teremos tutores em várias camadas, a elite esclarecida, imune a utopias, a erros, a equívocos. Vão filtrar com todo o carinho e preocupação bem-intencionada o que a internet poderá nos oferecer. E vamos agradecer imensamente por isso. A revolução está em curso; é para o nosso bem.
Essa proteção tão amável, tão carinhosa envolverá, primeiro, as plataformas digitais, que têm a perfeita noção do que é certo e do que é errado. Elas sabem mais do que todos os melhores especialistas do mundo em todas as áreas. Não há nada que não dominem melhor que doutores, pós-doutores, ganhadores do Prêmio Nobel, todas as maiores mentes desse planeta. Seus algoritmos são imparciais, isentos, equilibrados. Não adianta dizer que as plataformas estão sempre atentas a sinalizações de virtude, a coitadinhos opressores, colecionadores de mordaças. Vai ser do jeito delas... Isso pode: tremenda defesa da democracia. Isso não pode: “vai contra as diretrizes da comunidade”.
O mundo ficará lindo, o amor triunfará. E será desse jeito: com a autorregulação das redes sociais, com “agência reguladora” de olho nelas, com a força do Supremo
Então, reúnem ministros do STF, o ministro da Justiça, o presidente da Câmara dos Deputados, o diretor-geral da Polícia Federal num seminário com nome bonitinho: “Liberdade de Expressão, Redes Sociais e Democracia”. E eles falam sem parar... Arthur Lira defende um “caminho do meio”. É censura, mas vamos fingir que não é. Vamos entender o caráter protetivo e educativo da proposta. Qualquer problema insolúvel nas redes, e Lira indica a volta ao velho monopólio da informação... O parlamentar fala do “jornalismo profissional como mecanismo contra a desinformação”. Aquela imprensa antiga, acima de qualquer suspeita, que não mente, não deturpa, não erra, não confunde, não faz militância.
Tem nome bonitinho também o projeto de lei para aperfeiçoar a legislação brasileira sobre “liberdade, responsabilidade e transparência” na internet. O relator do projeto, o comunista Orlando Silva, tem certeza de que, para proteger mesmo a democracia, “a autorregulação das plataformas digitais é insuficiente”. Ele quer “a autorregulação regulada”, também conhecida como “corregulação”. Entendeu? É assim: as plataformas digitais fazem censura e ficam sujeitas a mais censura, a cargo de um órgão regulatório.
O ministro da Justiça, Flávio Dino (outro comunista, “graças a deus”), também defendeu a existência de uma agência reguladora, com “certos atributos de independência”. É para poder lutar de verdade pela democracia, para poder censurar mais conteúdos e mais rapidamente. Dino anunciou que um projeto de lei para regulamentar a difusão de conteúdo pelas redes sociais será levado a Lula na próxima semana. O Brasil mal pode esperar... Vai ficar assim: as redes sociais se censuram, são censuradas por uma agência e, como lembrou o ministro da Justiça, ainda tem o Supremo Tribunal Federal.
São censuras complementares, sempre em defesa da democracia, para evitar, como disse o diretor-geral da Polícia Federal, Andrei Rodrigues, “a união de pessoas distantes, com ideias semelhantes, criando uma ‘alma coletiva’ extremamente danosa”. Ele sabe tão bem o que é melhor para os brasileiros... Ele não quer “discursos de ódio, preconceito e raiva, que manipulam parte da sociedade, que podem levar a atos golpistas”. O mundo ficará lindo, o amor triunfará. E será desse jeito: com a autorregulação das redes sociais, com “agência reguladora” de olho nelas, com a força do Supremo. E, num estágio superior, mais à frente, com a autocensura feita por cada um contra si mesmo. Ou você quer sair falando qualquer coisa, sem se preocupar com a democracia? Censura em várias camadas, e todos serão salvos.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos