• Carregando...
O gozo estético pelo linchamento, por execuções públicas, pela humilhação de condenados, tão comum no passado, permanece entre nós, apenas escondido sob os véus da grande hipocrisia social, substância básica da moral pública
O gozo estético pelo linchamento, por execuções públicas, pela humilhação de condenados, tão comum no passado, permanece entre nós, apenas escondido sob os véus da grande hipocrisia social, substância básica da moral pública| Foto: BigStock

Steven Pinker, autor do livro "Os Bons Anjos da Nossa Natureza - Por que a Violência Diminuiu", lançado pela Companhia das Letras, em 2013, foi cancelado. No livro, Pinker dá exemplos de como não abrimos mais barrigas de pessoas vivas para suas vísceras caírem pra fora e elas gritarem de dor até morrer, nem espetamos mais cabeças em postes, nem cortamos pessoas em pedaços, nem queimamos hereges em fogueiras. Fato indiscutível.

Entretanto, como anti-hegeliano que sou, acredito na possibilidade que, num futuro não tão longínquo, possamos voltar a fazer coisas semelhantes. Minha dúvida é se não estaria a violência apenas menos visível. Não estaria ela sempre por aí, à espreita? Pinker sofre da ingenuidade típica de iluministas bem intencionados.

Nobert Elias, no seu "O Processo Civilizador", da Jorge Zahar, em 1990, já apontava para um dos fundamentos estéticos da civilização: a sensação do nojo. Assim como temos nojo de pensar em nossos ancestrais comendo ratos, dormindo com baratas passeando pelo corpo, comendo com as mãos sujas de esterco, defecando no meio da rua, temos nojo da ideia de ver cabeças cortadas e vísceras expostas na praça do mercado.

Arrisco aqui uma hipótese selvagem: assim como seríamos capazes de, num espaço de dez anos, voltar a comer ratos, caso a fome fosse radical, voltaríamos a conviver com cabeças cortadas e vísceras expostas nas ruas também.

O gozo estético pelo linchamento, por execuções públicas, pela humilhação de condenados, tão comum no passado, descrito por Johan Huizinga na sua obra "O Outono da Idade Média", da Cosac Naify, em 2010, permanece entre nós, apenas escondido sob os véus da grande hipocrisia social, substância básica da moral pública. Pinker errou a mão na sua tese "otimista". Freud, Elias, Huizinga, menos afoitos em confundir o business do progresso moral com a realidade, acertaram com mais precisão.

Não acredito que o grosso das pessoas que estão aderindo, às vezes, já como garantia de emprego, aos pedidos de cancelamento de colegas ou mesmo apenas de pessoas famosas o façam por verdadeira adesão à causa moral do bem. Acho que o fazem pelas seguintes razões.

1) Gosto de ver o outro se ferrar, poder xingá-lo, poder expô-lo à humilhação pública, vê-lo perder o emprego, o patrocinador, os milhões de seguidores. Fosse séculos atrás, estas mesmas pessoas estariam babando em cima de hereges a caminho da fogueira, como mostra Huizinga.

2) Se o objeto do cancelamento oferecer algum risco de competição profissional por espaço, dinheiro, patrocínio, interesse comercial seja de que tipo for, a adesão ao linchamento surge como garantia de ganho ativo na competição. A cultura do cancelamento é um mercado em constituição. Posso eliminar um professor concorrente, um articulista, um intelectual público, um agente público, assinando manifestos de horror contra o desgraçado da hora. A adesão às causas do bem hoje já atingiu o estágio de profilática para garantia de lucros.

3) Youtubers famosos, celebridades de todos os tipos, começam a pressionar plataformas de produtos online e marcas importantes de mídia a se dobrarem à fúria do cancelamento. O mercado, a publicidade e o mundo corporativo, paulatinamente, se tornam repetidores e apoiadores do linchamento.

O mais seguro hoje é você simplesmente não reagir a pautas como gênero e raça. Caso algum Torquemada louco para viralizar sua desgraça nas redes exigir de você uma opinião sobre tais tópicos responda "acho que as pessoas têm o direito de amar quem quiserem" e "acho o racismo um horror e deve ser combatido". Nem mais uma palavra. Estranho? Em épocas de caça às bruxas, até a língua deve ficar burra.

John Stuart Mill, no século 19, falava da "mediocridade conglomerada" como traço típico da democracia burguesa, território por excelência da hipocrisia de classe média. Essa mediocridade conglomerada é agressiva, repressora e destrutiva da liberdade. Mill já sabia que o melhor alimento para essa mentalidade miserável é se achar um agente do bem. Mais do que nunca, não confio em ninguém que diga estar do lado do bem.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]