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Da fragilidade da bondade
| Foto: BigStock

A filosofia sempre refletiu sobre os limites da ação humana para a realização do bem. O tema é vasto, mas podemos olhá-lo de perto num dos recortes mais claros desse problema, seguindo os passos da filósofa americana Martha C. Nussbaum, especializada nos gregos antigos.

Uma das suas obras capitais é traduzida no Brasil pela editora Martins Fontes: "A Fragilidade da Bondade, Fortuna e Ética na Tragédia e na Filosofia Grega".

A pandemia que vivemos é um exemplo pleno do que um grego trágico chamaria de ação da fortuna: ainda que tenhamos algum controle sobre ela (técnico, político, médico), a pandemia é cega, violenta, cruel, sem nenhuma intenção inteligente de sê-lo, portanto, um caso clássico da fortuna cega dos trágicos. Fortuna aqui é acaso, contingência, nada a ver com o uso comum de fortuna como grana. E, assim como veio, aparentemente, poderá desvanecer. E o furor interpretativo buscará manter-se de pé, depois de cientistas de ocasião terem jurado o apocalipse absoluto.

A pergunta é: até onde vai nossa autossuficiência, ou autonomia, quando agimos em nossa vida? E por "nossa vida" você pode entender o mundo, a sociedade, a política, o amor, a família, sua vida interior, enfim, tudo aquilo que compõe nossa existência concreta e diária.

Até onde você pode agir racionalmente e livremente sem que a fortuna destrua ou limite essa sua ação racional e livre? O problema pode ser resumido em três frentes.

Primeiro, nossa ação no mundo depende de nosso investimento em coisas que damos valor, tipo melhorar o mundo, cuidar de quem amamos, trabalhar em algo significativo, acumular bens materiais.

Mas, para atingir tais realizações, ficamos a mercê da fortuna em várias frentes: outras pessoas, instituições, condições de trabalho, epidemias (!), herança genética, um universo gigantesco de variáveis exteriores fora de nosso controle, logo, ficamos submetidos à fortuna cega que é fruto das atitudes das pessoas em si, seus afetos, seus interesses e suas relações, além dos elementos naturais e históricos fora de controle.

Por exemplo: vai tudo bem no trabalho e no amor, você pega coronavírus, a política nacional entra em surto, você tem dificuldade respiratória, se desespera, fica com medo, e sua autossuficiência vai para o espaço.

Um segundo campo de problemas é quando dois bens (coisas que pra você têm um valor positivo) entram em conflito e você não consegue evitar um embate destrutivo entre esses dois bens. Dinheiro ou amor? Filhos ou carreira? Ser corajoso e correr algum risco na pandemia ou covarde e preservar com mais segurança sua saúde e a dos seus? Guardar dinheiro para uma velhice segura ou viver agora, já que o futuro a Deus pertence, ou à fortuna?

Aqui, a fortuna age fazendo com que não haja necessariamente harmonia entre os bens que você considera positivos e que merecem seu cuidado e investimento. Preservar um implica destruir o outro. Alexander Herzen no século 19 e Isaiah Berlin no 20 descreveram esse tipo específico de conflito como o mais trágico de todos: o conflito entre o bem e o bem.

Um terceiro campo de problemas é a vida dos afetos humanos. Não os controlamos e eles contaminam nossa cognição, pensamento, vontade e razão. O "pathos" grego, traduzido comumente como doença ou paixão, revela esse vínculo entre afetos e desordem interna. O coração tem suas razões que a própria razão desconhece (Pascal, século 17). A vida interior é um palco para a devastação da fortuna constantemente.

Pois bem. A busca de ser virtuoso, honesto, generoso, corajoso, prudente, tudo aquilo que os gregos chamavam de "aretê" (virtudes) é acossada, no mínimo, por esses três campos de agentes desagregadores da autonomia humana. E esse combate ("agon" em grego antigo) é eterno, circular, implacável e sem necessariamente trazer nada em troca pelo esforço empreendido.

A fragilidade da bondade é justamente nossa vulnerabilidade à fortuna. Desde a queda do Muro de Berlim quase acreditamos que não seríamos mais vulneráveis a ela: o mundo seria uma festa. Ledo engano.

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