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Dentes sorridentes
| Foto: Unsplash

O Instagram estabeleceu o sorriso como uma commodity. Criou-se um gigantesco mercado odontológico de sorrisos. Mas, antes de olharmos mais de perto esse fenômeno social e econômico – refiro-me ao vínculo entre sorrisos e exploração odontológica–, façamos um reparo metodológico.

Durante o longo período histórico e pré-histórico em que quase nada aconteceu em termos de técnica, produção de riquezas e transformações sociais, a corrupção e o abuso entre pessoas e grupos permaneceram contidos pela própria pobreza geral da humanidade.

Como nos diz Thorstein Veblen (1857-1929) no seu genial "The Theory of the Leisure Class", de 1899, a mulher deve ter sido o primeiro objeto de acúmulo na nossa história. Ter muitas mulheres indicava o poder de um homem –os escravos em geral também.

Esse fato, claro, aponta para o evidente vínculo entre poder, riqueza e violência.

À medida que a modernidade, essa "parvenue" – essa recém-chegada na história, sem modos, que se acha – criou a aceleração do processo de produção, riqueza e aglomeração urbana, a corrupção e o abuso se fizeram indústria e escalaram para a condição de um mercado de relações comerciais em si.

Esse fato atravessa classes sociais e tem suas características especificas em cada nicho. Hoje, olhemos para o nicho dos mais pobres, ou das classes C e D, como se falava nos tempos do milagre econômico do Lula. E aí chegaremos à relação entre sorrisos e um certo mercado odontológico abusivo.

Disclaimer: evidente que o "abusivo" aqui não se refere à totalidade do mercado odontológico. Hoje, devemos falar como se fala com crianças para não ser mal interpretado.

Na era das redes sociais todos devemos editar nossos sorrisos. Afinal, ficar bem na foto e no vídeo é essencial para existirmos. Sorrir bonito é ter dentes bonitos.

Essa necessidade imperiosa abriu o mercado para todo tipo de empresa oportunista que vende sorrisos lindos a troco de custos mais baixos, mas que entrega, antes de tudo, muito abuso sobre suas vítimas.

Muitos veem esse fenômeno apenas como o crescimento natural do mercado de serviços para a população de baixa renda. Em tese, diante da impossibilidade de o Estado cuidar de tudo, o mercado é bem-vindo no sentido de dar acesso a serviços para os mais pobres.

O problema surge quando esses serviços se tornam oportunidade para abusos, como vem acontecendo entre nós. A corrupção é parte intrínseca das relações comerciais desde sempre, e permanece sendo na modernidade, só que empacotada para presente.

Imagine pessoas com baixo repertório, inclusive para consumo de bens de saúde. O mercado de bens de saúde é um dos mais ativos, ricos e promissores do mundo, já que viver bem, bem-estar e longevidade estão entre as commodities mais importantes do século 21.

Essas pessoas fizeram escolas ruins, quando fizeram, leem mal e, quanto mais velhas ficam – a idade avançada, hoje mais do nunca, é uma oportunidade para o mercado predatório e oportunista –, mais difícil para elas entenderem processos contemporâneos de relações comerciais, entre outras.

A pessoa que a atende na hora da venda do sorriso perfeito para o Instagram promete uma Disney de serviços e resultados. Os detalhes técnicos, quase sempre incompreensíveis para leigos, ainda mais para leigos de baixo repertório, pouco importam, principalmente diante da Disney que a espera ao fim do tratamento "de rico" que ela, finalmente, alcançou.

Depois de pagar caro em mil vezes no cartão, começa a via-crúcis do cliente vítima da falsa Disney dos dentes sorridentes. Detalhes que passam despercebidos na hora da contratação aparecem para atormentar a vítima.

Esses detalhes implicam sofrimento, dor, atrasos na entrega, idas e vindas, profissionais de difícil agenda, dificuldades remetidas a terceiros –como os laboratórios de prótese–, enfim, a dura consciência de que, mesmo que a promessa se realize, isso só acontecerá depois de muito abuso e muito gasto acima do contratado de partida.

O mercado de serviços para os mais pobres no Brasil é sempre uma mentira.

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