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In the dark
| Foto: Unsplash

Nossa espécie viveu na imobilidade por milhares de anos ao longo da sua lenta evolução. Essa imobilidade histórica, social e política, desenhou uma vida psicológica que lhe era simétrica. A repetição de formas sociais de modo infinito ao longo do tempo garantia a continuidade de hábitos que serviam como parâmetros inconscientes da existência.

O certo e o errado, seja lá o que isso seja, a vida após a morte, seja lá como for, o significado dos sonhos e dos desejos sexuais, as formas sociais de organização desses desejos, deuses e deusas a serviço de nossa sanha por significados que cobrissem, como uma manta de luz, a escuridão dos nossos sentidos para além da banalidade da física do mundo, tudo isso junto é o que sempre fomos sem saber exatamente o que éramos.

A imobilidade do mundo social mantinha esse processo sem mudanças. Acabamos por viver de modo inercial, sem saber o que fazíamos, incluindo aí a desconhecida psicologia ancestral.

De repente, tudo isso acabou num transtorno conhecido como modernidade. O movimento, as rupturas, cantadas em prosa e verso pela arte, pela literatura, pela filosofia, pelas ciências, pelos manifestos futuristas, se fizeram cotidiano.

O determinismo social, até então cego, passou à luz do dia, e decidimos que nós teríamos ciência o bastante para conduzir um processo gigantesco do qual até ontem nem tínhamos conhecimento da existência.

Do que se trata, afinal, essa descrição? Trata-se do livro "100 Years of Identity Crisis, Culture Wars over Socialisation", recém-lançado pelo sociólogo Frank Furedi (De Gruyter, uma editora alemã fundada em 1749). Furedi permanece sem tradução no Brasil, talvez por não ser conservador para os conservadores e não ser progressista para os progressistas. Essa divisão idiota que continua destruindo o pensamento público. A inteligência sob a bota da política partidária.

Furedi pergunta: de onde vieram a crise de identidade e as guerras culturais que dominam o espaço público? Não vou dar spoiler, mas apontarei como, a partir do cenário descrito acima, para o autor húngaro radicado no Reino Unido, surgiu esse fenômeno, hoje hegemônico, que assola a política, a universidade, a mídia, os psicoterapeutas e o que restou das famílias.

Para além do diagnóstico apontado nos primeiros parágrafos acima, importa ao sociólogo a causa imediata do surgimento da adolescência como objeto da psicologia.

Sabe-se da importância de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), com o seu livro "Emílio" nessa invenção do jovem. Mas fomos muito mais longe do que imaginava nosso passeador solitário. O ponto de partida para Furedi é a desorientação que se abateu sobre os pais, ou as gerações mais velhas, como decorrência do processo acima descrito.

Ninguém mais sabe o que fazer com os jovens. E por quê? Porque ninguém nunca soube. Ninguém "formava" ninguém, a imobilidade da repetição infinita –paradoxo proposital– das formas sociais conduzia um processo em que a própria imobilidade repetida se constituía em cegueira.

Nessa ruptura, as ciências e a psicologia chamaram para si a capacidade –que nunca tivemos a rigor– de dizer como se formam jovens saudáveis. E aí, o caldo entornou tornou porque, como são campos de conhecimento que surgiram dessa mesma ruptura e aceleração da vida social, as ciências dos adolescentes são neófitas e não têm tempo suficiente para constituir nenhum saber de fato. Sem a máquina institucional acadêmica, qualquer um perceberia a ignorância de fundo dessas ciências.

O desespero dos pais –identificados como ultrapassados–, os interesses de mercado dessas próprias profissões, a desorganização crescente da imobilidade social e histórica, que mantinha a vida como sempre foi, se somam para criar o terreno do embate acerca de quem tem a última palavra sobre como deve ser um adolescente.

A parafernália ideológica tomou de assalto a ignorância que se diz conhecimento, submetendo a psicologia à bota político-partidária referida acima. Na verdade, ninguém sabe o que está fazendo com os adolescentes. Estamos no escuro.

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