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Imagem ilustrativa.| Foto: Pixabay

Acreditar na razão com uma fé cega é um equívoco recente na história e pré-história da humanidade. Essa superstição instalou-se definitivamente no século das luzes, o século 18.

Esta constatação – de que a crença cega no racionalismo é um equívoco – não implica um culto à irracionalidade nem a negação do valor da razão, é apenas uma constatação da própria razão.

Como dizia o filósofo Blaise Pascal no século 17, "nada mais típico da razão do que reconhecer seus próprios limites".

Por isso mesmo, o que está fora do escopo da razão – o irracional – é um problema voltado para o pensamento racional e não para bobagens do senso comum.

Nada do emocionalismo barato que permeia o papo furado sobre empatia. Falar do irracional é uma atividade da razão, um esforço para identificar elementos na ação humana que são impactados por agentes estranhos à autonomia do pensamento racional.

Por isso mesmo, muitos filósofos, psicólogos, historiadores, inclusive da literatura, pesquisam o irracional como componente da nossa história moral.

A vida é atravessada por elementos irracionais todo dia. Sonhos premonitórios – que assim pessoas os creem – intuições, sensações físicas fortes, ideias fixas, radicalismos políticos, ódios, paixões enlouquecedoras – essas andam condenadas pela histeria ideológica –, enfim, muitos são os exemplos.

Mas, se você quer entender como se coloca o irracional sob uma lupa para ver como ele funciona – seu impacto, alcance, estrutura e dinâmica –, dou como exemplo os estudos de E.R. Dodds (1893-1979), um historiador irlandês da Grécia antiga.

Nossa vida psicológica caminha por um estreito passo entre o medo, a ansiedade e a esperança.

The Greeks and the Irrational (Beacon Press 2020), sem tradução em português, é exemplo magistral de como se identifica o irracional no comportamento e na cultura de um povo como o grego antigo, uma das maiores culturas que já caminhou sobre a Terra. Claro que a fonte histórica aqui são os textos de época dos vários autores gregos de então: dramaturgos, autores dos épicos, oradores, filósofos, historiadores, "loucos".

Um dos primeiros tópicos é a manifestação do que Dodds chamará de "intervenção psíquica". O caso de Agamemnon, rei dos gregos na guerra contra os troianos, servirá de paradigma.

Usando os relatos sobre seu conflito com o mítico guerreiro Aquiles na disputa pela amante escrava deste, que foi roubada por aquele, o historiador apontará vários momentos em que as ações do rei são referidas como causadas pelo atê, palavra grega recorrente que, ainda que apresente significados secundários variados, sempre mantém o sentido primário de intervenção do sobrenatural – divino ou demoníaco – sobre o agente humano, roubando-lhe a autonomia do pensamento e das ações decorrentes.

Um outro fator investigado é a herança moral familiar ancestral, traço característico de inúmeras culturas antigas. O miasma, ou a contaminação dos descendentes por alguém que cometeu algum pecado mortal no passado – sendo a hybris ou desmedida o pior de todos no universo grego antigo –, é outro exemplo recorrente na literatura grega antiga. A vítima do miasma terá sua vida, seus pensamentos, emoções e ações contaminados sem possibilidade de redenção senão o castigo.

Antígona, narrada por Sófocles (497-406) em peça homônima, é um exemplo máximo. Sua autonomia é atravessada pelo fato de ser filha de um útero incestuoso – sua mãe, Jocasta, era sua avó, e seu pai, Édipo, era seu meio-irmão por ser filho de Jocasta. Por isso ela se considera indigna de continuar vivendo. Via-se como uma mancha no mundo.

A bênção da loucura com dons proféticos. Sonhos com mortos que trazem informações essenciais para os vivos. Cachorros nos templos – até hoje na Grécia as ruínas dos templos têm "cães de guarda" cuidados pela população – que lambem feridas humanas e as curam.

Dominada por crenças no sobrenatural, nossa vida psicológica caminha por um estreito passo entre o medo, a ansiedade e a esperança.

A razão é apenas uma pequena parte dela, mas nem por isso menos importante. A alma irracional nos habita, às vezes como êxtase, às vezes como pesadelo.

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