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Detalhe de retrato de Dostoievski pintado por Vassily Perov.
Detalhe de retrato de Dostoievski pintado por Vassily Perov.| Foto: Google Art Project

Seríamos nós previsíveis? Alguma teoria detém os segredos da vida psíquica? Há toda uma tradição que crê ter descoberto o segredo de como nos moldar para que cheguemos aonde essa tradição diz ser capaz de nos levar. Como moldar bons cidadãos, consumidores conscientes, enfim, como nos fazer pensar da forma que devemos pensar para atingir certos fins?

Stewart Justman, professor da Universidade de Montana, escreveu um livro que é uma verdadeira pérola para quem quer entender um pouco da nossa cultura contemporânea obcecada com os poderes da psicologia. The Psychological Mystique, ou “A mística psicológica”, publicado pela Northwestern University Press, em 1998, sem tradução no Brasil. O autor tem dedicado parte da sua obra a investigar os efeitos perversos do que ele chama de “pop psychology” – psicologia para consumo –, tema que ele relaciona com a busca contemporânea pelo paraíso dos idiotas, título de outro livro dele.

Não somos previsíveis nem quando fazemos o mal, mas podemos ser manipulados por cálculos estratégicos

No caso da mística psicológica, a investigação do método de educação do filósofo John Locke (1632-1704) é seu ponto de partida. E qual é esse método? Pegue uma criança e ensine a ela boas ideias, porque a mente é formada por uma associação de ideias que lhe são dadas pelo meio à sua volta. Por sua vez, o método de introduzir boas ideias na cadeia de associação de ideias, que seria o modo de funcionamento da mente, moldará bons cidadãos, consumidores proativos, profissionais motivados, enfim, pessoas mais felizes e participativas. Resumindo a ópera: somos previsíveis e manipuláveis para o bem – e os maus nos manipulam para o mal. Simples assim?

Justman problematiza brilhantemente essa tese, não só para a pôr em dúvida no seu pressuposto – descobrimos como funciona nossa mente e podemos retirar dela muito potencial –, mas também para descrever alguns dos seus efeitos nefastos, senão ridículos. Comecemos por esta segunda crítica. Aqui entra em cena um personagem importante: o duplamente sobrinho de Freud, duas vezes. O que isso significa? Edward Bernays era filho do irmão de Martha Bernays – nome de solteira da mulher do Freud – e da irmã do próprio Freud. Logo, sobrinho duas vezes do famoso médico vienense inventor da psicanálise, que, aliás, considerava o sobrinho um picareta, como todo americano.

E qual era sua picaretagem? Dizendo-se herdeiro intelectual do seu tio – que Freud negava veementemente –, ele criou uma psicologia para as relações públicas e a propaganda. Bernays queria salvar o mundo vendendo cigarros Lucky Strike para mulheres emancipadas. O psicanalista da opinião pública, como gostava de ser visto, fez campanhas envolvendo mulheres famosas, ricas e bonitas em Nova York – na França, com a aristocracia feminina –, em que essas celebridades eram fotografadas fumando Lucky Strike.

Feminista, ele entendia que podia emancipar as mulheres dando a elas o direito de ascender à condição de fumante de Lucky Strike. As vendas bombaram! Eis a previsibilidade que Bernays pôs em prática e, desde a sua “descoberta”, o mundo do marketing, das empresas, das relações-públicas, do coaching e da educação em geral repete a fórmula à exaustão do ridículo.

Os personagens de Dostoiévski são profundos porque nem mesmo o narrador sabe o que eles pensam e sentem

A primeira crítica, aquela que nega a previsibilidade humana a partir da modelagem das nossas ideias, é mais complexa. Não somos previsíveis nem quando fazemos o mal, mas podemos ser manipulados por cálculos estratégicos – os mesmos de Bernays. Para essa crítica, o autor faz uma leitura primorosa de Dostoiévski. O grande russo criou personagens permeados pela indeterminação infinita da alma e, por isso mesmo, por uma opacidade que é humilhada por teorias como a de Bernays. A polifonia – vozes infinitas internas em contradição contínua –, descrita por Mikhail Bakhtin (1895-1975) como sendo a marca dos personagens de Dostoiévski, é essa impermeabilidade à modelagem estratégica da alma.

Os personagens de Dostoiévski são profundos porque nem mesmo o narrador sabe o que eles pensam e sentem. Sombras, às vezes circundadas por uma luz misteriosa, que caminham pelo mundo, sofrendo, amando, matando – este é o resultado. Justman e eu concordamos com Dostoiévski.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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