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Acredita em passaporte de vacina e ri de quem diz que Bolsonaro acabou com a guerra
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A imprensa brasileira ainda não entendeu como funcionam os memes nem que é parte fundamental para que o esgoto da internet seja legitimado a ponto de fazer parte do discurso oficial de autoridades. Exatamente por isso, continua noticiando exclusivamente o que acontece em rede social e sendo manipulada por moleque que usa computador no porão da avó. Tivemos de ontem para hoje mais uma rodada de 7 x 1 do bolsonarismo na imprensa.

Eu juro jamais ter imaginado que a imprensa se prestaria a escada de meme que nem os grupos de apoio bolsonaristas estão levando a sério. Claro que se prestaria. É irresistível expressar superioridade moral e receber aplausos do grupo dizendo que Bolsonaro não presta. Tanto se tirou sarro que passou a ser coerente perguntar ao presidente do Brasil se ele se meteu no conflito entre Rússia e Ucrânia. Perguntaram. Agora dizem que ele enfiou o meme no discurso. A culpa é sempre dos outros e só dos outros.

Fico muito à vontade para falar que os jornalistas estão errando feio porque eu aprendi errando e quebrando a cara. Ocorre que, quando cheguei ao fundo do poço, parei de cavar. É importante. Todos os memes e ataques políticos são formatados para chegar à imprensa mainstream. Não é possível que eles cheguem sem a ajuda da imprensa. De novo a imprensa ajuda. Eu continuo aqui brincando de Cassandra.

Há um mecanismo psicanalítico chamado Identificação Projetiva, que nós vemos diariamente funcionar nessa relação abusiva entre o presidente Bolsonaro e a imprensa. Digo abusiva porque ninguém deveria trabalhar de graça para o outro, ainda mais sem saber. Identificação Projetiva é quando você projeta algo sobre o outro com tanta eficiência que realmente faz aquilo acontecer.

O exemplo mais comum é a pessoa dizer que tem medo da agressividade de outra. Daí ela fica atazanando tanto a tal da outra que ela estoura mesmo e comprova que é agressiva. Foi assim com a história do meme de Bolsonaro acabando com a guerra. Nos grupos antibolsonaristas em que eu estou, foi uma piada sensacional aquele vídeo do Putin falando russo legendado com agradecimento a Bolsonaro por impedir a guerra em nome de Deus. Ocorre que nos grupos bolsonaristas também. Ontem de manhã ninguém tinha levado isso a sério.

Ainda comentei com um amigo ontem cedo que a imprensa ia descobrir o meme da esquerda lá para a hora do almoço, ia começar a dizer que os bolsonaristas acreditavam e isso ia virar notícia. Ele riu. Depois assustou. Realmente os jornalistas julgam que todo bolsonarista é um imbecil descerebrado e incapaz de análises. Claro que pode ter alguém que acreditou. Tem gente que acredita até em passaporte vacinal de COVID. (Calma que eu explico adiante).

Na imprensa, o pessoal acredita que o pai da ideia do Bolsonaro pacificador é o ex-ministro Ricardo Salles. Ele publicou o meme quando a piada da esquerda já havia sido apropriada pela direita. Isso acontece muito e nos dois sentidos diariamente. Um lado inventa uma piada para botar raiva no outro e o outro dá um jeito de não passar recibo. Às 8h da manhã isso já circulava na internet de esquerda tirando sarro da cara dos bolsonaristas:

No jornalismo, o pessoal ama se levar a sério. Felizmente não é assim em todo lugar e nem na política. Tem muita gente que convive com pessoas de outra ideologia e um tira sarro do político do outro. Eu sei que é chatíssimo explicar piada, mas eu sou chata e vou explicar. Isso é um meme tirando sarro dos bolsonaristas que defendiam a ida do presidente à Rússia dizendo que até poderia pacificar o conflito. E usa a estética que ficou famosa durante a campanha entre os apoiadores do presidente. Várias outras piadas com montagens foram feitas:

Pronto, já lembrei de quando a gente ainda era capaz de rir de si mesmo sem ter de sair correndo para defender um político. É o tipo de provocação que faz até bolsonarista dar risada. Só que os bolsonaristas acharam aí uma saída maravilhosa para rebater quem tinha condenado a viagem do presidente à Rússia bem após declarar guerra à Ucrânia. Em vez de dizer só que Bolsonaro nasceu virado para a Lua, apimentaram, disseram que ele é quem resolveu o conflito. Daí entra o jornalismo brasileiro e transforma piada em notícia.

Eu recebi de amigos bolsonaristas prints de políticos e vídeos dizendo que Bolsonaro foi ungido por Deus para acabar com a guerra. Fiz questão de tomar satisfação. Era o mais puro suco de vingança e deboche. Eu fiz falas condenando a manutenção desse calendário de visitas na iminência de uma guerra. Continua sendo minha posição. Tivemos sorte, mas o destino de todos nós foi colocado na mão da sorte. Meus amigos queriam só dizer que eu mordi a língua e ainda provocar resposta para tirar mais sarro da minha cara. Terá troco.

O que mais eu ouvi de bolsonarista é que o presidente tem uma sorte impressionante. Mesmo quando tudo está para dar errado, as coisas viram de um jeito que ele sai por cima. Não ouvi ninguém falando a sério nisso de ter pacificado o conflito. Aliás, ouvi sim. Na imprensa. Foram perguntar ao presidente se ele avisou os Estados Unidos antes de viajar e se falou com a Ucrânia. O Brasil não tem mais soberania e me avisaram só agora.

Simplificar o outro, subestimar, debochar e esculachar é um vício progressista no Ocidente. O problema é quando o povo começa a levar isso a sério. Foi notícia de jornal que o Salles tuitou dizendo que o Brasil ia resolver o conflito. Depois ele disse que estava brincando e quem não acompanhou a piada o dia todo já viu aí toda a conspiração bolsonarista. Virou notícia de novo. Salles diz que tuíte era brincadeira.

Estamos suicidando o jornalismo ao insistir nesse câncer que é o jornalismo declaratório e no amor à arrogância, bicho que come o dono. Hoje sinto que tive sorte por começar a ser ataca em massa já em 2015, junto com a Paula Rosiska. Quebrar a cara a sério, com consequências na vida real, me fez ver o tamanho da minha ignorância e começar a estudar redes. Nas redações, as pessoas acham mesmo que entendem de redes.

Jair Bolsonaro respondeu hoje aos repórteres que não falou com os Estados Unidos antes de ir à Rússia. Eu não entendi por que ele falaria. O Itamaraty cuida dessas situações e o presidente não deve satisfação de suas viagens. Não foi uma viagem marcada após a declaração de guerra, que seria diferente. Daí, espertamente, ele diz que a guerra acabou com a presença dele "por coincidência ou não". Ninguém perguntou se foi coincidência ou não, perguntaram se ele falou com a Ucrânia. Eu já desisti, sinceramente. Para criança que apanhava e batia na rua é desesperador ver o massacre e a inércia.

Ocorre que essa história do presidente brasileiro ungido que acabou com a guerra foi legitimada. Estamos falando dela aqui, verdadeira ou não. Enquanto a imprensa não aprender que tem sido parte importante das campanhas de desinformação feitas por tudo quanto é político, vamos continuar a ver o teatro do absurdo. Falar o dia todo que bolsonarista é burro porque "olha só no que ele acredita" é um vício.

Ocorre que o jornalismo e os próprios jornalistas são prejudicados diariamente por essa busca de sentir superioridade moral. Realmente sentem e isso tem consequências gravíssimas na qualidade do trabalho. Ao debochar do mais burro o dia inteiro no Twitter, é natural as pessoas começarem a pensar que são mais espertas que as outras. Se achar mais esperto que político é suicídio, mas tudo bem.

A sensação pessoal já passa para o profissional com uma queda impressionante de qualidade intelectual nas apurações. É isso que eu chamo de intelectualidade nível Dollynho. Aqui chego na história do passaporte de vacina porque eu simplesmente não me conformo. Juro que fui até falar com alguns cientistas pensando que talvez a louca fosse eu e isso funcionasse. Não funciona para conter a doença, só para regular estoque local de vacina mesmo.

Se passaporte de vacina não funciona, por que vários lugares exigem o da febre amarela? Porque esse funciona. Quando você toma a vacina da febre amarela, não pega nem passa mais a doença. Se o do COVID é inócuo, mal não faz, certo? Errado. Leva a acreditar que significa uma segurança que não há, as pessoas relaxam com medidas que realmente previnem o contágio. Nem teste é 100%. Nós vamos ter de aprender a conviver com essa doença e delírio não parece ser o melhor jeito.

E aqui volto ao jornalismo. Sei que a gente ama dizer que só acredita em ciência, o que é negacionismo científico. Seres humanos precisam de crenças que vão muito além do escopo de estudo da ciência. Alguns precisam até de mentiras sinceras mesmo. Jornal publica até horóscopo, eu já traduzi ao vivo missa de canonização em latim. Nada disso é do escopo da ciência, não quer dizer que não exista. Ocorre que não está em disputa no campo científico porque não pode ser objetivamente mensurado e constatado.

Já o passaporte de vacina está no campo científico. É mensurável, objetivo e tem sido tratado com a mesma seriedade de teorias conspiratórias. No caso da COVID, há uma utilidade sim para o passaporte, não deixar que as vacinas estraguem. Segundo a OMS, seria uma política mais eficiente distribuir as vacinas entre os países, atingir primeiro todo mundo que quer e depois quantificar quem não quis para saber como lidar com o problema. A gente não está distribuindo vacina nem entre cidades.

É muito complicado lidar com os estoques dessa vacina. Tudo na conservação dela é especial, o frasco tem de ser usado inteiro no dia que abre, as temperaturas são muito diferentes do que estávamos acostumados com as demais vacinas. Se o pessoal esquece o dia e atrasa, desequilibra tudo. Um passaporte de vacina é uma medida administrativa que pode ter muito impacto nessa organização. Ocorre que não é assim que ele está sendo tratado.

De duas, uma. Talvez os jornalistas realmente tenham raciocinado que o passaporte não garante nada. Ou talvez tenham até lido a OMS dizer que o passaporte não garante nada e que é necessário aplicar outras medidas sanitárias para prevenir a transmissão da COVID. Sabendo isso, acham que brasileiro é muito burro, não vai entender essa história e decidiram apertar o piloto automático do "vai morrer". Ou talvez eles nem tenham questionado. Bolsonaro é contra, eles são a favor. Não arrisco um palpite.

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