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Apaixonados por picaretas
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O Brasil é a Meca das fake news. Nenhum outro país do mundo acredita em mentiras tanto quanto a gente. É um fenômeno que merece investigação. As novas tecnologias trouxeram novas formas de disseminar e consumir informações que ainda estamos entendendo. O aumento da liberdade e da possibilidade de ser ouvido veio acompanhada da dificuldade de diferenciar fatos de versões e, por alguma razão, os brasileiros se tornaram craques no consumo de informação falsa.

O brasileiro acredita tanto em picaretas que acaba colocando a própria vida nas mãos deles. Embora no cenário político fique mais evidente a substituição de fatos por opiniões agressivas, é um fenômeno que se espalha por diversas áreas do conhecimento.

Se houvesse uma escala de crueldade dos picaretas, assim como existe para os psicopatas, não tenho dúvida de que os antivacinas estariam no topo. Eles aceitam colocar milhões de vidas em risco e efetivamente estão provocando epidemias de doenças evitáveis apenas por vaidade. Criaram um movimento cuja amálgama é a negação da ciência, dos fatos, da experiência e do conhecimento. Nesse contexto, vira autoridade quem provoca o caos, quem defende o indefensável.

O brasileiro é o povo que mais acredita em notícias falsas, segundo estudo o Global Advisor Fake News, publicado no mês de agosto pela Ipsos a partir de entrevistas com 13,5 mil adultos em 27 países. 62% dos brasileiros entrevistados disseram que já acreditaram em uma "notícia" que depois vieram a saber que era mentira. A média mundial é de 48%, menos da metade dos adultos. Temos aí um motivo de orgulho: somos os acreditadores mais profissionais do mundo.

A ONG Avaaz conduziu, em conjunto com a Sociedade Brasileira de Imunizações, um estudo complexo sobre a desinformação acedrca da vacinação no Brasil. O relatório "As Fake News estão nos deixando doentes?" vai muito além da simples pesquisa de opinião. Identifica quais são os mitos passados adiante como se fossem fatos ou ciência e rastreia a origem deles.

As plataformas digitais como Twitter, Facebook, Instagram, YouTube, Google e Amazon são coniventes com a criação de um ecossistema bilionário de propagação de falsidades e legitimação de picaretas como se fossem cientistas ou realmente conduzissem pesquisas válidas. Os absurdos que dizem não apenas continuam no ar como são recomendados como melhores resultados a quem procura por informação. Por quê? O melhor resultado para a plataforma é o que mantém a pessoa mais tempo online, não importa que seja um conteúdo falso e que pode matar gente. Muitos de nós ainda confundem esse tipo de esquema de propaganda enganosa com fontes de informação.

Felizmente, é uma minoria que deixa de vacinar os filhos no Brasil. Apenas 13% relatam ter feito isso e o motivo mais citado é falta de planejamento ou esquecimento. O segundo motivo é achar que a vacina "não era necessária". A questão é que, em números absolutos, estamos falando de mais de 21 milhões de crianças e adolescentes.

Lendas urbanas conhecidas estão por trás dos medos relatados pelas pessoas que deixam de vacinar crianças. São histórias sem vínculo com a realidade, mas bem montadas, espalhadas entre diversos países, com forte apelo emocional. A informação real, com dados científicos e método de pesquisa também está disponível para os mesmos adultos, mas eles têm dificuldade de buscar e recebem das plataformas uma ampla oferta de mentiras atrativas sobre o assunto.

Mesmo quem vacina os filhos acredita em algumas das mentiras inventadas pelo movimento antivacina e o número de pessoas que adotam essas narrativas como verdade é alarmante: 2 em cada 3 adultos brasileiros.

As afirmações fantasiosas e rastreadas até sua origem no movimento antivacina, principalmente dos Estados Unidos, fazem parte do repertório de muitos brasileiros. De acordo com o levantamento da Avaaz, o engano é sensivelmente maior entre aqueles que se informam pelas redes sociais. Veja o percentual de brasileiros que aponta como corretas algumas das lendas urbanas mais famosas:

24% - Há boa possibilidade de as vacinas causarem efeitos colaterais graves

20% - Há boa possibilidade de as vacinas causarem a doença que dizem prevenir

19% - Mulheres grávidas não podem se vacinar

18% - Algumas vacinas contra DSTs - como a do HPV - servem como incentivo para que jovens tenham comportamento promíscuo

17% - Há tratamentos alternativos tão ou mais eficientes que as vacinas

14% - O governo usa vacinas como método de esterilização forçada da população pobre

13% - Vacinas podem sobrecarregar o sistema imunológico das crianças

12% - Contrair a doença é, na verdade, uma forma mais eficaz de prevenção do que a vacina

7% - Os pais e familiares podem se contaminar com as fezes da criança que tomou vacina com vírus vivo, como do rotavírus

Felizmente, 22% das pessoas apontaram espontaneamente que nenhuma das afirmações erra correta - não havia essa alternativa disponível.

Obviamente que essas histórias todas não brotam espontaneamente na cabeça das pessoas, têm uma origem rastreável. A Avaaz foi atrás de 30 artigos mentirosos e já desmentidos pelo Ministério da Saúde, com apoio de agências de informação. Não adianta simplesmente lançar um desmentido se não houver apoio das redes sociais para que ele seja imediatamente relacionado à mentira inicial.

"Infelizmente, descobrimos que o alcance dessas verificações de fatos é baixo. Enquanto o post antivacinação mais compartilhado do Facebook em nossa amostra, um vídeo contra a vacina do HPV, teve quase 20 milhões de visualizações e gerou 762.000 reações, a publicação do Ministério da Saúde que explicava que o conteúdo era desinformação tinha apenas 10 compartilhamentos", diz o relatório.

Os 30 artigos mentirosos chegaram a um alcance impressionante: "2,4 milhões de visualizações no YouTube, 23,5 milhões de visualizações no Facebook (somente vídeos), 578.000 compartilhamentos no Facebook (considerando apenas o link principal, não suas várias repetições)", informa a Avaaz.

A maioria das mentiras sobre vacinas que são adotadas como fatos pelos brasileiros foi produzida por motivação econômica. 32% da desinformação foi rastreada até o site norte-americano Natural News, que vende suplementos alimentares e medicina alternativa. Essa indústria bilionária é hoje fortemente sustentada por teorias da conspiração contra a ciência, os governos e a indústria farmacêutica.

"Descobrimos que quase metade da amostra original (os 30 artigos ou vídeos antivacina corrigidos pelos verificadores brasileiros) foi traduzida literalmente ou com base em informações originalmente publicadas no exterior, em inglês, nos Estados Unidos. O site “Natural News” é a fonte original de 32%18 de nossa amostra inicial e representa 69% do conteúdo não brasileiro da amostra. Os outros 15 conteúdos eram nativos do Brasil", informa a Avaaz.

O rastreamento da origem de cada uma das mentiras é bem detalhado e mostra um "boom" do conteúdo antivacina a partir de 2017 nas redes sociais. A maioria dos milhões de visualizações é dos últimos 2 anos. É interessante notar que esse tipo de movimento não vem apenas dos grupos focados em vacinação, há outros tipos de comunidades que circulam as mesmas mentiras. Segundo o levantamento da Avaaz, são 3 tipos de páginas as mais ativas:

1. Páginas que pregam a existência de um plano para criar uma “nova ordem mundial”.

De acordo com essa teoria, existe um conluio secreto para dominar e controlar a sociedade, e a vacinação é parte da trama. A partir da nossa análise, esses sites e grupos formam a maioria dos que disseminam desinformação sobre vacinas no Brasil. No Facebook, por exemplo, 2 de cada 3 postagens antivacinação analisadas foram publicadas por páginas que discutem conspirações.

2. Páginas sobre “estilo de vida saudável”, “estilo de vida natural” e “medicina alternativa” vendem produtos lado a lado a artigos sobre os efeitos malignos das vacinas.

3. Grupos onde pessoas compartilham testemunhos de más experiências com vacinas, defendem que o corpo deve encontrar seu próprio caminho para o aumento da imunidade e que as pessoas devem ter liberdade para escolher entre ser vacinadas ou não - esses parecem ter um alcance menor.

O rastreamento completo da origem de cada uma das falsas narrativas mais comuns no movimento antivacina nos leva a um ecossistema complexo de teorias conspiratórias que se expande para várias áreas do conhecimento, em diversas redes sociais, contando inclusive com a produção de livros por alguns de seus expoentes como forma de legitimar as mentiras que contam. É, hoje, um universo bilionário.

O levantamento da Avaaz ainda merece diversos outros artigos porque é educativo: descobrimos o processo de fabricação de mentiras que nos fazem desligar o racional e agir emocionalmente.

Falar sobre malefícios das vacinas em grupos declaradamente sobre o tema é menos eficiente do que lançar uma teoria conspiratória envolvendo vacinação em grupos que duvidam dos governos e das elites. Trata-se de um mecanismo poderoso para envolver emocionalmente alguém que tem uma desconfiança sobre o governo mas não consegue explicar com fatos. A mentira sobre vacina passa a ser o "fato" que as pessoas precisavam. Há uma listagem das mais comuns, todas elas rastreadas pelo estudo até a origem:

A. Casos reais e raros de efeitos colaterais graves ou morte após a vacinação;

B. A crença de que as vacinas obrigatórias são um plano secreto e maligno da “nova ordem mundial” para dominar a sociedade;

C. Relação entre vacinas e autismo;

D. Alegações de que metais nocivos, como mercúrio, estão presentes em vacinas em alta dosagem;

E. Afirmação de que as vacinas são uma tentativa de controlar a população mundial, o que teria sido confessado por Bill Gates;

F. Argumentos de que as vacinas prejudicam o corpo, enquanto terapias e produtos naturais seriam a verdadeira maneira de prevenir doenças;

G. Suposição de que elites e médicos não vacinam seus filhos;

H. Crenças de que as doenças já estavam diminuindo antes da disseminação das vacinas;

I. Casos de supostos médicos que teriam confessado “a verdade” sobre como vacinas são realmente perigosas.

São afirmações absurdas e nenhum adulto em contato com outros seres humanos terá um fato sequer para legitimar essas mentiras. Ainda assim, veremos muitos se apegando a algum detalhe de alguma dessas narrativas para dizer que, lá no fundo, há uma verdade escondida. O que leva uma pessoa a negar a própria experiência de vida para se agarrar à opinião sem comprovação de um desconhecido? A mente humana é um mistério.

Estamos aqui falando de vacinas, algo que faz parte do dia-a-dia de todas as famílias e que cada um de nós experimentou. A propaganda de desinformação é tão poderosa que leva adultos a negarem o que viveram. Imagine o efeito da propaganda nas áreas em que a maioria da população não tem vivência pessoal.

Os picaretas fazem sucesso porque nos proporcionam um conforto intelectual e espiritual que o conhecimento não proporciona: a certeza. A vida é feita de dúvidas, a mentira é feita de certezas.

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