• Carregando...
Costelinha barbecue
Costelinha barbecue do Jamie Oliver’s Diner.| Foto: divulgação/Jamie Oliver's Diner

O chef e celebridade internacional Jamie Oliver anunciou publicamente que vai contratar uma consultoria de "apropriação cultural" para rever suas receitas. Sinceramente, não sei o que sobra. Resolvi pesquisar e achei um estudo da Universidade de York que analisou as sobras nos dentes de cadáveres britânicos desde a Idade do Ferro até o final da Era Medieval.

É interessante porque eles comiam algo que ainda hoje está presente na culinária britânica e pelo mundo. A dieta original tem ingredientes presentes até hoje na Cabbage Soup, por exemplo. Eles bebiam leite e comiam laticínios, aveia, repolhos e alguns tipos de grãos. Em outros trabalhos, são registradas a caça de animais nativos. Tempero é zero. O primeiro a chegar, pelos fenícios, é o açafrão. Vai ficar difícil não ter apropriação cultural nos programas do Jamie Oliver.

Preciso confessar que gosto do Jamie Oliver e até comprei para o meu filho aqueles brócolis de pelúcia que ele fez em parceria com uma rede brasileira de supermercados. Também acho divertido como ele cozinha com as mãos porque é bem nojento, eu não comeria aquilo por nada. Prefiro o Gordon Ramsey, que xinga quem bota bactéria na comida dos outros.

Agora voltemos ao que seria na prática essa consultoria de apropriação cultural. Cá entre nós, tenho até uma ideia de negócio na área. Imagina montar um time de consultores que explicaria às avós italianas da patrulha do identitarismo que elas não podem mais fazer macarrão de domingo. É apropriação cultural desse maldito Marco Polo, opressor branco hetero cis de olho azul. A nonna seria obrigada a romper a estrutura opressiva e substituir a lasagna de domingo por yakissoba.

"Sua reação imediata é ficar na defensiva e dizer: 'Pelo amor de Deus, sério?' E então você diz: 'Bem, não queremos ofender ninguém'", explicou Jamie Oliver numa entrevista ao Sunday Times Culture. Antes de explicar como isso funcionaria, chamo atenção para um ponto, o da ofensa. Qual a razão de não querer "ofender" uma minoria? Vaidade, não querer ser visto como mau. Para quem ofende, isso faz diferença. Para a minoria em si, que diferença faz?

Segundo diversos levantamentos de casos reais apresentados no livro "The Coddling of The American Mind", evitar ofensas piora a saúde mental, inclusive das minorias. Não é porque a gente precise ser xingado ou seja masoquista. É porque o processo policialesco de patrulhar e cancelar quem ofende tem consequências piores do que a ofensa em si. Ou seja, programas para prevenir ofensas no atacado beneficiam mais quem ofende do que o ofendido.

Então Jamie Oliver é um dos integrantes do parque de areia antialérgica britânico. Não. Seria injusto dizer isso. Ele fez uma campanha contra alimentos superprocessados e tóxicos que realmente teve impacto na indústria. É conhecido por ter revolucionado a alimentação escolar no próprio país, algo que tradicionalmente não recebia a devida atenção e tinha impactos na saúde de todos.

Sabendo disso, pode ter se aguçado sua curiosidade sobre o que seria na prática a tal da consultoria de "apropriação cultural". De repente, ele deu esse nome para lacrar na imprensa mas pode ser alguma coisa que preste. Vai que reverte dinheiro para comunidades que precisam, aumenta a cultura culinária do próprio país, sei lá. Quem mudou a alimentação escolar e botou verdura tem crédito.

Vou contar a vocês um exemplo prático de coisas que o chef pretende fazer. Jamie Oliver tinha um programa em que viajava pelo mundo conhecendo sabores e inventando novas receitas. Um episódio foi feito na Índia há 10 anos, país que já foi subordinado à Coroa Britânica e que conseguiu a própria independência com um movimento liderado por Gandhi.

No episódio, o chef britânico fala das rotas de comércio que levaram temperos da Índia à Inglaterra, algo malvisto hoje. Não era comércio, era colonização. Em um determinado momento, ele diz que é para brindar a comida porque ela é "do império". Isso precisava mudar. O que foi feito? O nome da receita era "lemon-scented, roast empire-style tandoori chicken", ou seja, frango Tandoor assado com perfume de limão estilo império. Agora, o prato chama-se "Frango Assado Temperado". Entendeu a diferença?

Qual a diferença em mudar o nome de um prato publicado em 2011 vai fazer para os indianos ou as minorias? Provavelmente nenhuma. Quando muito, vai deixar contente alguém que tenha ficado bravo na época. Mas por Jamie Oliver vai fazer muito. Como assim? Identitarismo não é militância, é mercado. O chef Gordon Ramsey abriu um restaurante asiático em Londres, acusado de não ser legítimo. Daí, o rival anuncia uma "consultoria de diversidade". Bom para os dois, inócuo para a diversidade.

Aqui falamos de mercado mesmo, não de pautas identitárias, falamos do que se chama em inglês de "woke" e aqui parece cada vez mais chamado de identitarismo. É o uso de discursos que parecem militância para atacar alguém dizendo defender um grupo mas, na prática, não defender ninguém além de si próprio. Se possível reverter financeiramente além da parte reputacional, maravilhoso.

Quando um chef badalado diz que vai abrir um restaurante de culinária de outro país, duvido que alguém espere a reprodução exata. A gente pensa em elementos da outra cultura adaptados ao estilo do chef. É o que ocorreu com o Lucky Cat, que tem inspiração na cena de drinks japonesa de 1930. No Brasil, levamos isso às últimas consequências, foi abolida a palavra limite.

As fotos acima mostram três iguarias de restaurantes japoneses no Brasil: temaki de copo, sushi burguer e temaki de coxinha. Seriam exemplos de "apropriação cultural"? Sinceramente não sei, mas temo que sejam motivos de uma declaração de guerra do Japão contra o Brasil. O chef Ramsey não chegou tão longe. O problema dele é que a repórter asiática do guia "Eater London" criticou todos os pratos por não serem autênticos e reclamou de ser a única asiática no restaurante. Daí começou o escândalo da apropriação cultural.

O identitarismo é predominante na mídia. Para dizer que defende minorias, a repórter viu se o restaurante preservou tradições que não são nem dele nem dela - ela é descendente de chineses, não de japoneses - e qual a proporção de cada raça na inauguração. O que isso muda na prática para a minoria japonesa? Nada. Mas gera um movimento de mercado.

Em época de redes sociais, o burburinho em torno de polarizações e cancelamentos tem retorno em dinheiro. No mínimo é uma publicidade espontânea ou um alcance de público que nem teria como pagar. Além disso, um novo mercado é aberto, o de consultorias que iriam prevenir o problema apontado pela mídia do identitarismo. Siga uma a uma as empresas canceladas e veja se alguma deixou de contratar uma consultoria de inclusão em seguida.

É sobre isso, copio os lacradores. Não consigo imaginar em pleno século XXI, com a globalização, alguma comida que não utilize sabores ou técnicas descobertas em outro país. Um jeito de "consertar" isso nos casos em que os países mais ricos lucram com o que vem dos mais pobres, seria destinar dinheiro. Vendeu macarrão? Royalties para a China. Seria ridículo, concordo. Mas menos ridículo do que fingir que mudar nome de prato em reality show é militância e defesa de minorias.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]