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O youtuber Felipe Neto.
O youtuber Felipe Neto.| Foto: Reprodução

Fui bloqueada por Felipe Neto há muitos anos, quando reclamava do conteúdo infantil que produzia. Agora que ele entrou nessa fase de influencer político "esquerdista", confesso estar arrependida por ter reclamado até tomar um block. A vida anda tão dura que um pouco de divertimento não me faria mal.

Claro que estar bloqueada não me impede de ler as postagens desse novo guru ideológico da política brasileira. Ocorre que eu preciso entrar com a conta reserva ou naquela versão anônima do navegador que o pessoal usa para ver site de mulher pelada. Muita mão de obra, acabo esquecendo.

Tenho pequenos momentos de alegria e grandes gargalhadas terapêuticas quando algum bom samaritano faz o favor de enviar prints das tretas mais quentes. Ontem foi o dia de dar duplo twist carpado de tanto rir. A treta envolvia ninguém menos que o Enzo zero, o primeiro caso de enzo da epidemia brasileira de enzos, Enzo Celulari. E daí entrou Felipe Neto. Fiz até pipoca.

Enzo Celulari não foge da Raia, concluiu hoje de manhã o escritor Flavio VM Costa, que estava do lado contrário do mais ilustre enzo do Brasil nessa briga. Apesar de ter pai e mãe famosos, ele chegou aos 24 anos discreto, sempre longe de escândalos e bate-bocas. Mas todo mundo tem aquele dia em que o dedo começa a coçar e a gente posta algo completamente sem filtro. O dele chegou.

Quando as pessoas são muito envolvidas com uma causa, é comum que vejam o mundo pelo prisma da causa. Podem reparar, qualquer causa é assim. E o Enzo é vegano, acha isso super importante, milita o tempo todo. Claro que pode ter passado pela cabeça dele algo do tipo "nossa, será que finalmente o mundo se iluminou?". Eu só não entendi por que ele foi escrever isso em público.

Tivesse parado dois segundos e mandado um zap para um amigo ou familiar, já tomaria o deboche de volta em privado mesmo e a gente nem saberia da história. Mas Enzo Celulari, empreendedor social, resolveu dizer ao mundo que talvez a conversão ao veganismo explique a redução no consumo de carne do brasileiro durante a pandemia. Claro que fez o maior sucesso na internet.

Meu twitter não é daqueles blockbusters, mas tenho lá meus seguidores fiéis. De uns meses para cá, em quase todas as minhas postagens aparece alguém pedindo socorro financeiro. Tem gente que quer vender coisa de dentro de casa para comprar comida, outro posta a geladeira vazia, pessoa que precisa dar o animal de estimação porque não consegue mais alimentar, enfim, vocês também têm visto.

É evidente que as pessoas vão ficar revoltadas, entender como deboche e provocação uma coisa dessas. Um empreendedor social de 24 anos de idade deveria entender isso. E eu até acho que ele entendeu. Apagou o post e não chorou não, não fugiu da raia, não ficou xingando quem reclamou. Só que aí apareceu Felipe Neto na defesa e a coisa começou a ficar boa mesmo.

Agora sim que você realmente ferveu de raiva e já está indo procurar esse post para xingar. Felipe Neto não tem milhões de seguidores à toa. O crescimento exponencial nas redes não é ligado a conteúdo, mas aos sentimentos de raiva e ódio. Quanto mais raiva um post causa, mais tempo a pessoa passa usando produtos da plataforma e mais interage com o post. A maior interação faz com que conteúdos deste influencer cheguem até a sua rede, onde alguém pode gostar dessa ou de outra postagem.

Na postagem, Felipe Neto tenta se colocar na posição de líder autoritário de um grupo que representa o bem lutando contra o mal. Autoritário porque lança mão de regras freestyle para condenar e defender atitudes. Também porque se propõe a dizer o que as pessoas podem ou não dizer e quem são os intocáveis. O golpe está aí, cai quem quer.

Não há como saber se o discurso é meticulosamente articulado ou se, de tanta tentativa e erro ao juntar grupos por ódio e raiva, Felipe Neto já faz isso naturalmente. A estrutura da postagem é um sucesso de engajamento e causa mais revolta que o post original. Vou ter o trabalho de dissecar as várias camadas da mensagem para você entender por que ela causa uma reação tão contundente.

A primeira frase: "o hate que vocês estão jogando para o Enzo Celulari é de uma arrogância intelectual tão pedante" não faz sentido, mas é necessariamente recebida como ofensa por quem criticou a postagem. É um juízo de valor feito sobre todo o grupo e cada um, sem conexão com a realidade. Nem todas as reações foram ódio, arrogantes ou pedantes. Arrisco dizer que a maioria não foi.

Ao julgar como maus os que criticaram a postagem, Felipe Neto automaticamente cria um grupo onde não existia coesão. Ele passa a ser o líder do grupo oposto, o que vai defender a postagem. Arremata com "e tá do nosso lado contra o BOZO", deixando claro que o grupo dele se une contra algo e há inimputáveis, determinados por ele. Se criticar, vai ser tido como arrogante, pedante e tudo mais.

Outro recurso retórico que tende a deixar as pessoas bem irritadas é o gaslighting, que eu explico em detalhes neste texto sobre o Sleeping Giants. "Mas o cara fez uma PERGUNTA!" é a alegação. Só que não é isso, quem entendeu de outra forma não é paranoico, louco nem maldoso. Era efetivamente uma pergunta, mas criava duas teorias. Uma das teorias era a do brasileiro ter se tornado vegano e estar comendo menos carne, para contrapor a afirmação de que o consumo caiu pela alta do preço em plena pandemia. Ainda que não seja conclusivo, causa espanto que um empreendedor social avente essa hipótese, é natural.

Mas a cereja do bolo é a conexão de riqueza com ignorância mais a sensação de proteção total dentro do grupo. Explico. "Sim, o cara é filho de 2 milionários. Óbvio que ele não tem noção da realidade econômica da pobreza no Brasil." é uma falsa relação entre duas verdades, a arquitetura básica das "fake news". O cara é filho de dois milionários sim, fato. Não tem noção da realidade econômica da pobreza, fato. Mas os dois fatos não têm relação necessária nem é óbvio isso.

Sem querer ou querendo, dizer que filho de milionário não tem noção de realidade mas deve ser inimputável caso esteja no seu grupo, é um belo atrativo para que a esquerda gourmet cole em Felipe Neto. Ele mostra que os defende e ataca quem os ataca. Também pouco se importa com o ocorrido, basta estar do lado certo. Além disso, inventa uma desculpa para alienação e insensibilidade. Arremata estimulando a tal "culpa burguesa", o sentimento de vergonha por nascer rico.

Tom Jobim dizia que, no Brasil, fazer sucesso é ofensa pessoal. Cultiva-se a vergonha de nascer rico ou ser rico. A saída tradicional é o rico fingir que é pobre, que passou pela mesma luta de quem é pobre ou que entende como é viver na pobreza. Trata-se de um dos maiores serviços de inutilidade pública que conseguimos criar na nossa sociedade.

Nascer rico não é vergonha, é uma sorte gigantesca, uma dádiva. A energia gasta com ações para aplacar a culpa por ter nascido rico poderia ser muito melhor empenhada assumindo a sorte de estar nessa posição. A maioria das pessoas passa um tempo considerável da existência lutando por sobrevivência. Quem nasce rico pode dedicar esse tempo a realizar sonhos, os seus e os das outras pessoas.

Não é natural que um filho de ricos não tenha noção de realidade, muito pelo contrário. Ele tem mais possibilidades do que a grande maioria de conhecer em profundidade a realidade do próprio país. Pode escolher usar o privilégio dado de presente pela sorte para melhorar a vida de muitas outras famílias de inúmeras formas. Dizer o contrário dá a impressão de que não é preciso ter impacto na realidade, basta fingir constrangimento por ser rico e repetir palavras de ordem.

Todo mundo tem problemas e dificuldades, ricos inclusive. A diferença está no tanto de tempo e energia que as pessoas pobres precisam investir para garantir o básico do dia-a-dia, que já vem garantido para quem nasce com patrimônio. O que fazer com esse tempo é uma escolha e existe a possibilidade de escolher mudar a realidade e deixar um legado, privilégio de pouquíssimas pessoas e benefício para muitas.

Estimular quem nasce com dinheiro, prestígio e poder a assumir isso, ser muito grato pela sorte e usar para beneficiar o máximo de pessoas tem um lado bem ruim. A militância de universo simbólico, a autoajuda disfarçada de militância e o socialismo gourmet pereceriam. Eles fazem sucesso justamente por oferecer uma alternativa honrosa a quem quer viver de forma fútil mas não ser visto assim.

Felipe Neto à parte, o Enzogate traz uma lição a todos nós, quem trabalha todos os dias para dar aos filhos o que não teve. Este é o foco da vida da maioria dos brasileiros. Nós sabemos o que nos faltou na infância, as oportunidades que não tivemos e queremos que os nossos filhos tenham tudo isso. Todo mundo se mata de trabalhar, engole sapo e faz das tripas coração por isso. Eu desconfio de que este seja também o caso dos pais do Enzo, que deram a ele a vida de hollywood que não tiveram.

O que nos faltou dói tanto que a gente esquece o que teve. Dar aos filhos o que tivemos é tão importante quanto dar o que não tivemos. Confesso que nunca vou poupar esforços para que o meu filho não passe pelas mesmas dores e privações que eu passei na idade dele. Mas o Enzogate faz lembrar que todo calvário traz ensinamentos e sabedoria que nós precisamos passar aos filhos de alguma forma.

Sugiro que deixemos a jihad de defesa do homem branco, cis, hétero e milionário feita por Felipe Neto para o anedotário da política brasileira na era da Cidadania Digital. Às vezes o abismo da manipulação e da futilidade nos lembra de olhar para o futuro, o que há de mais humano. Todos nós aprendemos algo valioso com as dores e privações das quais não queremos nem lembrar. Talvez seja uma ótima ideia colocar o foco em como passar esta sabedoria às próximas gerações.

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