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Há ainda muitas pessoas que consideram verdadeira a hipótese de "liberdade de expressão" nas redes sociais. Natural que as inovações nos encantem e, convenhamos, o marketing das grandes plataformas é mesmo muito bom. Sempre que se fala em abusos, robôs, uso indevido de dados e orquestrações, há o pessoal que vem com a bandeira da "liberdade de expressão", como se ela fosse possível nesse contexto. Não é o que pensam os governos e as empresas mais poderosos do mundo, que vêem malícia na atuação das "Big Techs" e entendem que é necessário que elas obedeçam às leis como todo mundo.
Um dos pontos mais debatidos dessa história toda aqui no Brasil é a tal da história das "fake news" no cenário político, principalmente no âmbito eleitoral. Temos a CPMI das Fake News no Congresso Nacional, a CPI das Fake News na Assembleia Legislativa de São Paulo, o Inquérito do STF e até uma enorme tentativa de debate público do TSE, que teve até conversa do presidente do Tribunal com Felipe Neto. O que tudo isso quer dizer?
Nós percebemos que há alguma coisa de errado no que considerávamos ser "livre expressão" nas redes sociais, mas ainda não temos a exata clareza do ponto problemático. Um exemplo prático da interferência das plataformas nas eleições dos Estados Unidos mostra que a liberdade existe apenas dentro dos interesses das plataformas, que são particulares e muito pouco transparentes.
Depois de uma movimentação das 400 maiores empresas norte-americanas, incluindo a gigante Microsoft, de audiências no Congresso dos Estados Unidos e de investigações conduzidas pelo FBI sobre uso indevido de dados - que incluem a gravação das câmeras e microfones dos usuários 24h por dia - as plataformas prometeram agir com firmeza contra a desinformação durante a campanha para a presidência dos Estados Unidos. É uma promessa que a gente ouve ser feita praticamente todos os meses, sem jamais dar em nada.
Será que as plataformas não têm como bloquear a ação dos tais "robôs" (perfis falsos controlados em bloco ou por Inteligência Artificial)? Têm, existe a tecnologia para isso, mas a opção tem sido atacar determinados tipos de discurso e deixar os robôs livres. Para que se tenha uma ideia de como é precisa a identificação, a Microsoft, fez semana passada um comunicado oficial sobre tentativas de ataques de "robôs" - ou via Inteligência Artificial - vindos de servidores na China, Rússia e Irã. Todos foram contidos e, segundo os relatórios, havia grupos mirando na campanha de Biden e outros na campanha de Trump.
Plataformas como Facebook, Instagram, YouTube e Twitter propuseram um outro tipo de ação, que agrada bastante muitos jornalistas, mas não têm nenhum sentido de ser no universo digital: fact-checking. Em vez de conter ações maliciosas de distribuição, que podem ser detectadas e interrompidas em tempo real via Inteligência Artificial, a resposta é checar, grão a grão, quais informações são "verdadeiras". A briga pelo direito das mulheres nos esportes não se enquadra na verdade que as redes sociais desejam.
A discussão sobre trans no esporte, competindo diretamente com mulheres, é algo muito quente no mundo todo. Talvez exista tanto debate porque as regras impostas nas competições são totalmente dissociadas da ciência e da biologia, centradas em ideologia e teorias sociológicas jamais comprovadas na prática. Explico: biologicamente, existem pessoas trans e há marcadores genéticos disso, como está há anos demonstrado pela pesquisa do Prince Henry's Institute of Medical Research. Ocorre que não é essa a medida escolhida para esse tipo de definição, é outra, a de quem se "identifica psicologicamente" como pessoa do sexo feminino, em avaliação subjetiva.
Para além disso, existe outra discussão: é possível uma competição física justa, em pé de igualdade, entre mulheres e trans? Há quem estique a questão da igualdade entre homens e mulheres até a fantasia de que haveria possibilidade de enfrentamento físico em pé de igualdade. Tiradas as raríssimas exceções de mulheres muito fortes contra homens muito pequenos, a regra é que o homem tem supremacia física.
No caso de pessoas trans que têm vocação para o esporte, o que fazer? Decidiu-se colocar na equipe com que se identificam psicologicamente, sem exigir nem a cirurgia de transição. Portanto, um atleta que biologicamente é homem e produz testosterona pode competir com mulheres se tomar estrogênio. Não há como uma mulher competir fisicamente em pé de igualdade com alguém cujo físico foi desenvolvido com testosterona na adolescência.
Em muitos países, a briga para impedir a participação de trans que se beneficiaram de testosterona na adolescência é simplesmente para fazer justiça no esporte. Nos Estados Unidos, é um tema que vai muito além e tem a ver com oportunidades de educação, trabalho e desenvolvimento profissional das mulheres, conquistadas a duríssimas penas ao longo das últimas décadas e soterradas em poucos anos. Atletas de ponta têm gratuidade e inúmeras facilidades de admissão nas universidades dos Estados Unidos e muitas atletas que se prepararam a vida inteira estão sendo deixadas para trás pelos protocolos estabelecidos pelo Comitê Olímpico Internacional em 2015.
Obviamente o tema se torna político. Há diversas organizações nos Estados Unidos que provocam o debate sobre competição justa nos esportes. A militância lacradora tende a interditar qualquer reclamação de mulher com a acusação de "transfobia" e o consequente "cancelamento" nas redes sociais, a exemplo do que aconteceu com a escritora J. K. Rowling. O argumento do preconceito é o único utilizado para dar acesso ao esporte feminino a pessoas trans, ainda que jamais tenham feito cirurgia de transição. Não se trata de preconceito, mas de conceito: o fundamento do esporte é a competição justa, que inexiste nesses casos, como mostram os resultados. Se ainda não temos uma solução, sabemos que subjugar mulheres não é a saída, mas isso está acontecendo.
E o que o fact-checking das plataformas nas eleições dos Estados Unidos tem a ver com trans no esporte feminino? O mero debate da questão é passado à categoria de "fake news", tem impulsionamento impedido e alcance reduzido pelas plataformas. Enquanto isso, informações falsas sobre COVID-19, terraplanismo ou conspirações de pedófilos não têm qualquer restrição. Isso chama liberdade de expressão?
O último caso concreto é o da American Principles Project, que se dedica à defesa do direitos das mulheres nos esportes e juntou US$ 4 milhões entre seus associados para fazer anúncios sobre isso na campanha eleitoral, algo que é permitido na legislação norte-americana. O vídeo (veja abaixo), que questiona o candidato presidencial Joe Biden e o senador Gary Peters sobre o tema, foi classificado por "checadores de fatos independentes" como tendo falta de contexto e levando a conclusões errôneas. Agora, mesmo com patrocínio, aparece seguido desde anúncio e do link para um conteúdo ideológico cuja contestação é baseada no argumento do preconceito. Existe preconceito, mas o caso aqui é de competição justa.
Veja, com legendas em português, o vídeo que foi censurado pelo Facebook:
A APP respondeu com uma nota assinada por seu diretor, Terry Schilling: "Hoje, o Facebook cedeu à pressão de uma campanha de ativistas de extrema esquerda, efetivamente censurando nossos esforços em informar os eleitores sobre as ameaças dos Democratas ao esporte feminino. Nosso anúncio faz uma afirmação muito simples: as políticas apoiadas por Joe Biden, pelo senador Gary Peters e outros Democratas podem destruir o esporte feminino. Há ampla evidência sobre essa alegação e a cada dia mais. Nada dito pelo PolitiFact Review (a agência checadora) diz que nossas informações são falsas. Ainda assim, o Facebook decidiu que o nosso anúncio pode 'enganar pessoas' porque 'falta contexto'. Aparentemente, eles só acreditam que o anúncio seria justo se ele incluísse os 'argumentos' dos esquerdistas contra nós. Agora nós precisamos de pré-aprovação dos Democratas para fazer um anúncio que critique as políticas deles? Esse é um padrão absurdo - e que o Facebook obviamente não aplica para o outro lado". Não há notícia de ações semelhantes em postagens defendendo trans no esporte feminino.
As organizações que militaram ativamente contra o anúncio têm argumentos bastante curiosos, já que não entram no centro da questão: competição justa nos esportes. Segundo a auto-intitulada "Human Rights Campaign", presidida por Alphonso David, o American Principles project é um "grupo de ódio". "O que a APP quer é um futuro em que as pessoas LGBTQ possam ser demitidas, ter negado o direito à habitação, serviços de saúde ou acesso aos negócios simplesmente pelo fato de ser quem são. Mas nós continuaremos a responsabilizá-los e expor suas mentiras", declarou à imprensa dos Estados Unidos. É importante deixar claro que a única militância da APP é com relação à presença de trans com capacidade física superior à das mulheres no esporte feminino. Essa parte de demitir, não ter casa, saúde ou negócios não faz parte das campanhas.
O Think Tank conservador Heritage Foundation, que também teve vídeos com debates sobre o tema com alcance reduzido pelo YouTube com justificativas parecidas, emitiu um comunicado oficial alertando para a atuação tendenciosa das redes sociais nas eleições. Por tradição, a instituição não apóia candidatos. "Este não é um caso em que haja qualquer ambiguidade - o PolitiFact está jogando com o sistema por pontos políticos. O PolitiFact deve ser suspenso do programa de verificação de fatos do Facebook e a empresa deve fazer uma revisão completa desse programa se quiser que os conservadores tenham alguma confiança no futuro", alertou Klon Kitchen, diretor de Políticas Públicas para Tecnologia da Heritage Foundation.
Quando os governos dos Estados Unidos, da Inglaterra, da Alemanha ou o nosso, do Brasil, resolvem chamar as plataformas de redes sociais à responsabilidade, imediatamente surge o canto da sereia da liberdade de expressão. Ele ganha corpo, é amplificado por aqueles que usam a burla em benefício próprio e as pessoas bem intencionadas imaginam que todos atuam nas redes como elas fazem, com um perfil em que imaginam dizer o que querem e seguir o que querem. O caso do debate sobre trans no esporte feminino mostra que a liberdade é pura ilusão e as plataformas têm muito o que explicar à sociedade.