• Carregando...
Mario Frias x Marcelo Adnet: quem ganhou a briga?
| Foto: Reprodução/ Twitter

Por alguma razão que a própria razão desconhece, o Estado brasileiro passou a ser participante de uma picuinha entre dois ex-colegas de trabalho. Isso em pleno feriadão da Independência do Brasil e no meio da maior pandemia vivida pela nossa geração. O humor incomoda políticos e, ao que tudo indica, é mais um daqueles casos em que o espírito se acostuma rapidamente às benesses do poder e à comodidade dos grandes veículos de comunicação.

Para os ultrajovens, Mario Frias é alguém que quer acabar com o establishment na cultura, Marcelo Adnet é um poderoso comediante da Globo que se diz de esquerda e essa coisa de surtar com humorista surgiu no governo Bolsonaro. Quem é jovem há muito mais tempo sabe que isso é narrativa muito recente, não a realidade. Até outro dia, Mario Frias era o establishment cultural, Marcelo Adnet era representante da contracultura e o Brasil passou anos discutindo se podia ou não fazer humor com políticos e partidos.

Comecemos com a briga mais recente nas redes sociais, porque, goste ou não, você financiou este espetáculo. O Secretário da Cultura do governo gravou um filme publicitário que deve ter levado muito a sério, acabou como parte de um esquete humorístico e então a máquina pública foi acionada para "defendê-lo". Confesso que, até agora, ainda não entendi direito a gritaria e preferia que não se usasse dinheiro público nisso.

Há sempre os maldosos que vêem na biografia do Secretário da Cultura um impeditivo para ocupar cargos públicos. Ser ator de Malhação, um dos mais persistentes no elenco da novela para adolescentes, seria incompatível com o desempenho da função pública. Não faz muito sentido. Nos Estados Unidos, são casos clássicos de atores que passaram à política Ronald Reagan e Arnold Schwarzenegger.

Não se sabe exatamente quando e como Mário Frias se aproximou da política, mas é evidentemente difícil abrir mão dos privilégios de ser uma estrela de TV de uma hora para outra. Políticos e militantes são a principal matéria prima dos humoristas brasileiros e não só no período democrático. Mesmo durante a Ditadura Militar, ainda que com grandes diferenças de tratamento, autoridades viravam motivo de risadas nas mãos de comediantes como Agildo Ribeiro, Chico Anysio e Jô Soares. Celebridades não ficam expostas à crítica ácida e ao humor na mesma medida em que os políticos, são blindadas pelas empresas com quem têm contrato.

Mário Frias foi a estrela de uma campanha publicitária do governo para valorizar os heróis do Brasil, algo que a maioria dos brasileiros tende a ver com bons olhos. Só que o filme, pago com dinheiro público, é tão pomposo e pretensioso que a gente dá risada mesmo sem querer. Natural que virasse prato do dia de humorista, como virou. Aliás, isso até deixa a campanha mais famosa.

O quadro de humor de Marcelo Adnet tinha Jair Bolsonaro como protagonista, aparecendo em um "Arquivo Confidencial" do Faustão. Entre as diversas surpresas emocionantes, obviamente tinha o Fabricio Queiroz. E, lá pelas tantas, numa pontinha, aparece o Secretário da Cultura. O surpreendente foi a reação ao quadro, imediata, virulenta, absolutamente desproporcional e com uma quantidade assustadora de erros ortográficos.

Até aí, pode ser ridículo e confissão de fraqueza que poucos homens públicos fazem, mas não tem nada demais, vida que segue. Um falou, o outro não gostou e deu escândalo, caso encerrado. Dois ex-colegas de emissora em diferentes fases da vida, cada um dando o que tem à sociedade. O problema é quando perfil oficial da Secretaria de Comunicação da Presidência da República, cuja manutenção é paga por nós, resolveu entrar nessa picuinha. Foi lá o governo, no Twitter, bater boca com humorista. Adivinha o resultado? Óbvio, outro esquete.

Nessa briga toda, é importante não esquecer um ponto específico: jamais um político brasileiro se beneficiou tanto da arrogância dos humoristas politicamente corretos do Brasil quanto Jair Bolsonaro. Por mais que, no momento, pareça que Mario Frias leva a pior, sugiro observar as cenas dos próximos capítulos.

Quando à alegada "censura dos humoristas", um debate que mobilizou a internet, não é novidade e não foi inventada por Jair Bolsonaro. Como a memória política do brasileiro é curta, tomo a liberdade de lembrar a Lei Eleitoral votada pelo Congresso Nacional para as eleições de 2010, que continha uma pérola: proibia humor com políticos e partidos no rádio e na televisão por todo o período eleitoral. A ABERT, Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão, recorreu ao STF contra a proibição e o julgamento se arrastou por quase 10 anos.

No plenário do Supremo Tribunal Federal, imediatamente os efeitos da lei foram suspensos até o julgamento final. Só que os ministros fizeram uma ampla discussão sobre o humor e seu papel na expressão humana em diversas sessões, até finalmente colocarem um ponto final na história no ano passado. Mas tanto a presidência da Câmara quanto a presidência do Senado defenderam, durante muitos anos, a censura a humoristas durante o período eleitoral.

Recentemente é um fenômeno comum nas redes sociais difamar ou atacar alguém e depois dizer que se tratava de "humor". São visões subjetivas. Para os que sentem prazer no sofrimento alheio, pode realmente ser engraçado o ato deliberado de provocar sofrimento em alguém. Câmara e Senado, em 2010, defendiam que se proibisse veiculação daquilo que fosse ridicularização, degradação ou ultraje contra políticos ou partidos. A alegação é que isso prejudicaria a performance dos candidatos que fossem tema desses humoristas, sem tempo para a devida reparação durante a campanha.

A aposta da Câmara e do Senado em censurar o humor que ridiculariza ou degrada alguém estava errada. Segundo os políticos, preocupados mais com as próprias suscetibilidades que com o mundo real, isso prejudica a performance eleitoral. Anos depois de CQC x Jair Bolsonaro, vemos que o efeito pode ser exatamente o oposto.

O julgamento do STF acabou por colocar na jurisprudência do Brasil o humor como um direito, ligado à liberdade de expressão. Hipérboles, sarcasmo e distorção da realidade são alguns dos instrumentos usados para fazer rir. Mas, logo no início do julgamento, o então ministro Ayres Britto lembrou de algo importante na definição do humor: o poder dele não está apenas em fazer rir.

“Humorismo não é apenas uma forma de fazer rir. Isto pode ser chamado de comicidade ou qualquer outro termo equivalente. O humor é uma visão crítica do mundo e o riso, efeito colateral pela descoberta inesperada da verdade que ele revela.”, disse o ministro do STF citando de cabeça uma afirmação do cartunista Ziraldo.

Estamos aqui diante das "verdades que o humor revela", aquelas que nos calam tão fundo a ponto de provocar o riso. A grande questão é que nem o humorista nem o retratado por ele controlam quais são essas "verdades", já que elas dialogam com os valores e a história pessoal daqueles que estão assistindo. E, nessa era estranha do humor partidário, alguns imaginam ter o poder de conduzir o raciocínio das pessoas.

Quando o humor é feito pelo humor, os efeitos dele são previsíveis: o riso libertador ao descobrir qualquer verdade com a qual não gostamos de nos confrontar. Quanto o humor é partidário, ele terá o mesmo efeito, mas cada um acreditará que está diante de uma "verdade" diferente a ser descortinada, já que a prioridade não é o humor.

Até agora, o humor partidário só beneficiou politicamente aqueles que tentou desconstruir. Enquanto os humoristas crêem que o público está rindo apenas dos políticos que eles esculacham, as pessoas também estão rindo do comportamento do humorista, que não desconfia disso. Não houvesse dinheiro público envolvido, a peleja entre globais seria até interessante de acompanhar.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]