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O movimento feminista vai ouvir Pepe Mujica ou ele não tem lugar de fala?
| Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

"A agenda de direitos é uma expressão da estupidez humana" e "o feminismo é bastante inútil" são frases que podem ser identificadas como conservadoras ou direitistas por meio da indigência intelectual que vive o debate político brasileiro. São, na verdade, afirmações de um ícone das esquerdas, o ex-presidente do Uruguai, Pepe Mujica.

Embora atravessemos uma era em que até no Natal tem gente querendo meter a política partidária e ideológica, há questões que vivem fora desse universo. Toda análise de Pepe Mujica obviamente é ideológica e de esquerda, já que cada um de nós lê os fatos do mundo de acordo com a própria consciência, princípios e história de vida. No entanto, o que ele fala sobre os movimentos não é uma análise com base na ideologia, mas com base num raciocínio pragmático e em experiência de vida.

Pepe Mujica é um homem de 84 anos, que milita politicamente desde os 20. A experiência de vida dele é, obviamente, muito diferente e muito mais rica que a da molecada dedicada a militar hoje pela internet tomando para si opiniões de pessoas que admira. Ele viveu várias fases diferentes da evolução tecnológica, dinâmica política da América Latina e regras de convivência social.

Caso fatos importassem para os movimentos contemporâneos apimentados por debates na internet, a luz vermelha teria acendido quando as neofeministas entraram em confronto com Camille Paglia, feminista clássica. Pepe Mujica repete várias das críticas dela.

O principal conceito coincidente entre os dois é a negação sistemática pelo movimento feminista de que mulheres são maternais. Há exceções? Claro que sim, mas é uma característica feminina ser maternal. Negar a natureza feminina ou ter vergonha dela e tentar substituí-la pela masculina não seria o avesso do feminismo?

"Há mulheres exploradas. E as tratadas como mais insignificantes são as mulheres abandonadas com filhos, para quem o movimento feminista não dá bola. É uma das coisas mais dolorosas. Onde há mais machismo é nas camadas sociais mais baixas, porque o homem a larga com três ou quatro filhos e que se danem. É podre assim a coisa. De toda forma, a mulher, com suas falhas e suas coisas, a mulher tem uma responsabilidade com seus filhos que não é a do homem. Faz qualquer coisa para alimentá-los e protegê-los. A mulher sempre é uma mãe e nós andamos pelo mundo sempre precisando de uma porque senão não sabemos nem onde está a camisa.", disse Pepe Mujica ao semanário Voces do Uruguay.

O movimento de lacração feminista geralmente responde a esses temas com falácias. Uma é a de que "a responsabilidade do homem é igual à da mulher". A questão aqui não é responsabilidade, mas vínculo, sentimento e aceitação social. Um homem que abandona filhos é aceito socialmente, de forma hipócrita, ainda que muita gente negue isso publicamente. Se não fosse, porque temos mais de 5 milhões de crianças sem o nome do pai na certidão de nascimento? Todos esses homens viraram párias sociais? Não. Ou seja, a responsabilidade é bem diferente.

A outra é que "as mulheres não são maternais porque têm o direito de escolher ter ou não filhos". Ser maternal é diferente de ter filhos, não é preciso escolher gerar os próprios filhos para ser maternal. Aposto que você, de pronto, é capaz de listar as mulheres sem filhos que conhece e que são profundamente maternais.

Em entrevista à jornalista Fernanda Menna, em 2015, Camille Paglia explicou como o movimento feminista, a partir da década de 1970, começou a negar o valor da maternidade. "O feminismo cometeu um grande erro ao difamar a maternidade. Quando a segunda onda do feminismo começou no final dos anos 60 e início dos anos 70 e foi piorada pelas ideias de Gloria Steinem, que pregou a desvalorização da mulher como esposa e mãe, e a valorização da mulher profissional como aquela que é realmente livre e admirável. Betty Friedan (1921-2006), que eu admiro, começou a segunda onda do feminismo ao co-fundar a Organização Nacional para as Mulheres, em 1967. Ela era casada e tinha filhos, e queria que o feminismo fosse uma grande tenda que incluísse e acolhesse a todos. Mas Gloria Steinem era parte de um grupo que só se casou no final da vida e não teve filhos, e havia um tom de insulto ao tratar da maternidade", explica a intelectual feminista.

A maternidade e as características maternais somem do movimento feminista não por cálculo, ciência ou ideologia. Trata-se simplesmente do Narciso que acha feio o que não é espelho. Mulheres criadas em redomas não enxergam o quanto são privilegiadas e acham que o mundo se reduz às suas próprias expectativas e agendas. Elas mandam no neofeminismo e execram toda mulher que não as obedeça.

Essa postura da busca por uma "pureza absoluta", execração de quem não se rende a todos os pontos da agenda e domínio por um pequeno grupo alienado dos problemas reais se repete em muitos movimentos identitários e de defesa de minorias. Na prática, apesar dos discursos e, acredito eu, da crença na causa, as ações acabam tendo o efeito contrário do pretendido. É devido à atuação sectária e reacionária que se justifica moralmente e socialmente o surgimento do mesmo comportamento no extremo oposto: o da beligerância que não favorece ninguém, mas nutre egos.

"É bastante inútil o feminismo porque eu creio que o machismo é um fato e que a agenda de equiparação de direitos é inquestionável. Mas a estridência também acaba por prejudicar a causa da mulher porque cria o antagonista ruidoso. Excita o que há de reacionário na própria sociedade, que está aí.", observa Pepe Mujica.

É interessante que, do alto de seus 84 anos de idade, o senador e ex-presidente do Uruguai consiga traduzir um sentimento que muitas pessoas têm e tentam expressar. Quanto mais estridentes são os movimentos de defesa das minorias, menos eles defendem efetivamente as minorias e mais trabalham para dar destaque às suas lideranças, provavelmente medíocres em resultados concretos mas brilhantes na gritaria. É um energético para que o reacionarismo presente na sociedade se manifeste por lideranças da mesma qualidade, excelentes na gritaria e incapazes de produzir resultados efetivos ou agir conforme pregam.

O livro que tornou Camille Paglia famosa trata de uma particularidade desse movimento quando se fala da defesa dos direitos das mulheres. Em "Personas Sexuais: Arte e Decadência de Nefertiti a Emily Dickinson", ela explora, por meio da análise das relações sexuais entre homens e mulheres, o poder da figura mítica da mãe. "Muitos dos comportamentos machistas, arrogantes e estúpidos, são formas tortas de o homem dizer que não está sob o poder da mulher, que não é mais um bebê. São parte do medo do poder da mulher, do útero e da criação. Qualquer pessoa que tentar racionalizar isso, não irá pelo caminho certo", disse Camille Paglia em entrevista a Fernanda Menna.

Agendas que muitos julgam ser progressistas não estão levando a sociedade a nenhum progresso, muito pelo contrário. Para Camille Paglia, é necessário ter atenção aos efeitos negativos do que muitos convencionaram chamar de "ideologia de gênero" sobre os direitos das mulheres e as relações homem-mulher. Ela se refere especificamente às ideias de negação da ciência que começam com Michel Foucault, estabelecendo que os gêneros não são biológicos, mas construções sociais. Não é à toa que vemos, entre os reacionários, o mesmo movimento de negação da ciência, mas atrelado a outros temas como, por exemplo, terraplanismo.

"Dizem que o gênero é algo imposto pela sociedade, que não há base biológica para a ideia de gênero. Essas pessoas estão malucas? Elas não sabem que toda e qualquer pessoa que está na face da Terra nasceu do corpo feminino?", questiona Camille Paglia.

"As mulheres têm um poder tremendo sobre os homens. Se as feministas não querem esse poder, e querem apenas ser iguais aos homens, ok. O que eu vejo como observadora e como professora é que os homens são muito frágeis psicologicamente em relação às mulheres. E quando as mulheres renunciam ao poder da maternidade, como aconteceu na segunda onda do feminismo, elas perderam uma parte enorme de seu poder sobre os homens", analisa a professora e escritora feminista.

É interessante notar que todas essas observações, que hoje seriam identificadas como sendo conservadoras ou de direita, são feitas por pessoas cuja história pessoal comprova que são de esquerda e profundamente libertárias. A questão é que, nos últimos tempos, temos uma tendência de tentar encaixar todos os temas em caixinhas políticas e a maioria deles não pode ser enquadrada assim.

O debate aqui não é ideológico, é lógico: sem conexão com a realidade, nenhum movimento social produz resultados que sejam capazes de alterar a realidade na direção em que seus discursos pregam. Um movimento feminista que aceite a tese quase terraplanista de que os gêneros não são definidos pela biologia, mas pela construção social, é incapaz de resolver qualquer questão da vida real. Por isso vemos propostas puramente racionais, como criar leis que proíbam discriminação ou estabeleçam cotas, sem lidar com os problemas reais em profundidade.

Talvez pela observação dos efeitos concretos da atuação dos movimentos, Pepe Mujica tenha cravado: "A agenda de direitos é uma expressão da estupidez humana".

A reação do movimento feminista às ideias de Camille Paglia sempre foi de confonto direto: ela precisa ser cancelada. É mais um dado da dissociação entre esses movimentos e a realidade o fato de agirem como se tivessem procuração de todas as mulheres para se voltar contra uma de nós por suas ideias.

Qual será a reação as ideias de Pepe Mujica? Será que ele tem "lugar de fala" para falar de feminismo porque é um queridinho da esquerda ou não terá porque é homem?

O secretário geral do Partido Socialista, Gonzalo Civilo, respondeu a Pepe Mujica, que é do partido Frente Amplio: "O companheiro Mujica parece, há algum tempo, obstinado em atacar o Partido Socialista, o feminismo e as novas agendas". Sem dúvida nenhuma, é declaração de alguém que tem lugar de fala.

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