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O bispo Vincenzo Paglia, atual presidente da Pontifícia Academia para a Vida, em foto de 2014.
O bispo Vincenzo Paglia, atual presidente da Pontifícia Academia para a Vida, em foto de 2014.| Foto: Raúl Sanchidrián/EFE

Em 2009 já dava para sentir que algo andava mal na Pontifícia Academia para a Vida. Foi quando o então presidente da PAV, o arcebispo Rino Fisichella, publicou um artigo na capa do L’Osservatore Romano criticando o saudoso dom José Cardoso Sobrinho – saudoso não porque tenha falecido, mas porque há tempos não se manifesta publicamente (até por limitações de saúde), ao contrário de tantos eméritos que aproveitam o novo status para dizer todo tipo de bobagem. Não sei se o leitor se lembra: naquela ocasião, o então arcebispo de Olinda e Recife afirmou que estavam automaticamente excomungados, nos termos do cânon 1.397, parágrafo 2.º, do Código de Direito Canônico, os responsáveis pelo aborto realizado em uma pré-adolescente que havia engravidado após ser violentada pelo pai. Dom José deixou claro que a excomunhão não se aplicava à própria menina, e que ele mesmo não estava excomungando ninguém, mas apenas tornando pública uma pena automática aplicada pela lei da Igreja. Não adiantou e ele levou pedras de todos os lados, inclusive da CNBB.

Coincidência ou não, Fisichella acabou removido da PAV por Bento XVI no ano seguinte e enviado para um dicastério recém-criado. Mas não adiantou muita coisa. Após um período de seis anos em que a PAV esteve nas mãos do competente Ignacio Carrasco, o órgão passou a ser chefiado pelo bispo Vincenzo Paglia – sim, aquele do mural homoerótico. Dois meses depois, em outubro de 2016, o papa Francisco desceu o machado na PAV e revogou os mandatos vitalícios de todos os seus membros, renomeando alguns poucos deles em 2017. O novo estatuto aboliu a obrigação de os membros assinarem uma declaração de compromisso com a defesa do ensinamento católico sobre a dignidade da vida humana. Aí, já viu. Já falamos aqui do congresso realizado pela PAV em 2021 com críticas à encíclica Humanae Vitae, e dos tuítes na conta oficial tentando minimizar o status doutrinal daquele profético texto de São Paulo VI.

Sabem aquela história do jogador de futebol que teria dito “nosso time estava à beira do abismo, e então demos um passo à frente”? Pois então. Em 15 de outubro, o papa Francisco nomeou mais um punhado de membros para a PAV, incluindo a economista italiana Mariana Mazzucato, defensora do direito ao aborto e crítica feroz de Dobbs v. Jackson, a decisão da Suprema Corte americana que reverteu Roe v. Wade e devolveu aos estados o direito de legislar sobre o assunto; e o monsenhor francês Philippe Bordeyne, defensor de bênçãos para uniões homoafetivas e crítico da Humanae Vitae. A lista pegou tão mal – especialmente no caso de Mazzucato – que a PAV acabou publicando uma nota quatro dias depois, falando da importância de a Academia ter membros com “conhecimento em várias disciplinas e provenientes de vários contextos”, destacando o fato de haver não católicos entre os integrantes... mas sem mencionar Mazzucato (ou Bordeyne) diretamente. Ou seja, se o objetivo era responder aos críticos da nomeação da economista, a nota é um fracasso total. E, se o objetivo não era esse, pra quê o texto, então?

A PAV “tem lado”, e é o do Magistério da Igreja. É uma academia pró-vida. Ela pode e deve se engajar em debates com quem nega a dignidade do ser humano desde a concepção, mas para isso ela não precisa trazer os inimigos da doutrina para dentro da entidade

E tudo isso pouquíssimos dias depois de outro membro da PAV, Roberto Dell’Oro, bioeticista e teólogo da Loyola Marymount University, em Los Angeles, também ter criticado Dobbs e sugerido que um limite para o direito ao aborto poderia ser estabelecido no momento em que o feto passa a sentir dor, segundo o National Catholic Register. As afirmações foram feitas durante um painel com a participação de mais dois membros dessa universidade jesuíta, sendo que nenhum dos painelistas defendia a doutrina católica sobre a defesa da vida desde o momento da concepção, a ponto de Dell’Oro ter dito depois que “algumas visões ficaram de fora”.

Na tal nota de 19 de outubro, aquela em que a PAV tenta defender a nomeação de Mazzucato sem citá-la, a Academia diz que os membros são escolhidos para promover um “frutífero diálogo interdisciplinar, intercultural e inter-religioso”. Mas a PAV não foi fundada para ser ela mesma uma instância de debate sobre a dignidade da vida humana. No motu proprio pelo qual criou a PAV, São João Paulo II diz que a tarefa da Academia é “estudar e prover informações e treinamento sobre as principais questões legais e biomédicas ligadas à promoção e proteção da vida, especialmente em relação direta com a moral cristã e as determinações do Magistério da Igreja”. E nem o papa Francisco mudou isso. Os novos Estatutos, aprovados em 2016, começam dizendo que “o objetivo da Pontifícia Academia para a Vida é a defesa e a promoção do valor da vida humana e da dignidade da pessoa”. Ou seja, a PAV “tem lado” por assim dizer, e é o do Magistério da Igreja. É uma academia pró-vida. Ela pode e deve se engajar em debates com quem discorda da doutrina católica e nega a dignidade do ser humano desde a concepção, até para refinar os argumentos com que abastecerá os defensores da vida em todo o mundo. Mas para isso ela não precisa trazer os inimigos da doutrina para dentro da entidade e emprestar-lhes o prestígio de ser membros de uma academia vaticana.

Curiosamente, os Estatutos também dizem que os novos membros são escolhidos pelo papa “depois de ouvir a opinião do Conselho de Governo, e com base em suas qualificações acadêmicas, comprovada integridade profissional, expertise em seu campo e serviço fiel na defesa e promoção do direito à vida de todo ser humano”. Para Mazzucato entrar na PAV, portanto, algo teve de ser ignorado: ou os Estatutos, ou as suas opiniões sobre aborto. Segundo Zelda Caldwell, da Catholic News Agency, o papa Francisco já descreveu o trabalho de Mazzucato em termos positivos, como indo além da polarização entre o capitalismo de livre mercado e o socialismo estatizante. Tá, mas então que a nomeasse para a Pontifícia Academia de Ciências Sociais (e olhe lá), e não para a PAV, certo?

Felizmente, tudo isso tem remédio. “Os novos acadêmicos se comprometem em promover e defender os princípios sobre o valor da vida e a dignidade da pessoa humana, interpretados de forma consoante com o Magistério da Igreja”, seguem os Estatutos, acrescentando que alguém pode perder o status de membro da PAV “no caso de ação ou declaração pública e deliberada que seja claramente contrária aos princípios estabelecidos (...) acima, ou seriamente ofensiva à dignidade e prestígio da Igreja Católica e da própria Academia”. Então, ou a PAV faz valer seus Estatutos, ou estará assinando a própria sentença de morte, destruindo um trabalho tão valioso, saído do coração de João Paulo II e que teve à frente gigantes como um Jerôme Lejeune e um Elio Sgreccia.

Diplomacia vaticana insiste no erro

No sábado, o Vaticano anunciou a renovação, por mais dois anos, do acordo entre a Santa Sé e a China, cujos termos continuam secretos. O comunicado de imprensa diz que “o Vaticano se compromete a continuar um diálogo respeitoso e construtivo com a China para uma implementação produtiva do Acordo e maior desenvolvimento das relações bilaterais, com o objetivo de fomentar a missão da Igreja Católica e o bem do povo chinês”. O problema é que a China não está comprometida com nada disso, a julgar por todos os episódios recentes de perseguição religiosa contra os católicos que não aderem à tal “Igreja Patriótica”. Especialmente escandaloso é o caso do cardeal Joseph Zen, preso por ajudar os manifestantes pela democracia em Hong Kong e que ainda está sendo julgado pelas autoridades chinesas – aliás, que o Vaticano nem tenha esperado pelo desfecho do julgamento para decidir se mantém o acordo é para mim um grande absurdo. O caso nem sequer foi mencionado na entrevista que o cardeal secretário de Estado, Pietro Parolin, concedeu ao Vatican News.

“A história nos ensina que a Santa Sé, na delicada e importante questão da nomeação de bispos, muitas vezes concordou com procedimentos que levassem em conta as condições particulares de um país, sem, no entanto, jamais deixar de lado o que é essencial e fundamental para a Igreja, ou seja, a nomeação de pastores bons e dignos”, disse Parolin na entrevista. Mas, mesmo sem um conhecimento profundo de história da Igreja, arrisco dizer que em nenhum momento, na questão da nomeação de bispos, a Igreja cedeu tanto poder a autoridades civis claramente hostis ao catolicismo (no padroado ibérico, ao menos os monarcas professavam a fé católica...). O mais comum era que ocorresse o contrário, que a Igreja defendesse suas prerrogativas até mesmo contra os mais poderosos governantes – Henrique IV, imperador romano-germânico, que o diga. Parolin destaca um efeito positivo do acordo, ligado à validade dos sacramentos celebrados na China, e que sem dúvida é positivo, mas o preço que o Partido Comunista da China cobra é altíssimo: não há real liberdade religiosa, mas mera tolerância que nem mesmo se aplica a todos os católicos chineses. Como já afirmei aqui, olhando não o texto do acordo, que não é público, mas os acontecimentos recentes, ou o acordo é muito desbalanceado em favor do governo chinês, ou os comunistas não estão cumprindo sua parte; em ambos os casos, a renovação soa como insistência no mesmo erro esperando que ele produza resultados diferentes desta vez.

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