• Carregando...
Paulo VI em sua coroação papal, em junho de 1963: uma década e meia depois, ele desafiaria pressões internas e externas para publicar a encíclica Humanae vitae.
Paulo VI em sua coroação papal, em junho de 1963: uma década e meia depois, ele desafiaria pressões internas e externas para publicar a encíclica Humanae vitae.| Foto: EFE

Quatro anos atrás, no meu blog de ciência e fé aqui na Gazeta, chamei a Humanae vitae de “a encíclica que nunca deveria ter existido”. Não que eu pensasse isso dela, muito pelo contrário; a expressão se refere ao fato de que ela só veio à luz porque São Paulo VI demonstrou uma coragem ímpar ao reafirmar o ensinamento católico quando havia tanta pressão contrária, inclusive dentro da própria Igreja. E o papa foi não apenas heroico, mas profético ao falar de todas as consequências que estavam por vir com a liberação sexual – Mary Eberstadt explica isso de forma magnífica no seu Adão e Eva depois da pílula, que eu considero leitura obrigatória.

Mas os “reformistas” jamais desistiram de sua intenção de alterar o ensinamento católico a respeito do amor conjugal e de suas exigências. Recentemente, voltou a circular uma boataria segundo a qual o papa Francisco estaria para publicar um novo documento, ou algo parecido, “revisando” a Humanae vitae (um eufemismo, obviamente). Como não é segredo para ninguém que esse tipo de rumor às vezes é inventado do nada pelos defensores de certas ideias, só para ver se elas ganham impulso, eu estava propenso a descartar toda essa falação mais como wishful thinking que como indício concreto de que algo está para acontecer. E continuei pensando assim mesmo depois que o papa tratou do assunto no voo de volta do Canadá. Perguntado sobre a possibilidade de se reconsiderar o ensinamento da Igreja, Francisco deu voltas, voltas, voltas e, no fim, não explicou muita coisa, embora os “progressistas” tenham ficado bem felizes com a referência a “desenvolvimento” do dogma ou da moral.

(Aqui, uma observação muito necessária. A repórter Claire Giangrave tentou trazer João Paulo I para o rolo ao afirmar que “até o seu predecessor João Paulo I achava que uma proibição total talvez devesse ser revista”. Essa história está contada pela metade. Sim, é verdade que Albino Luciani, quando bispo de Vittorio Veneto, estava entre os que esperavam maior “flexibilidade” na questão da contracepção, e inclusive manifestou essa opinião a Paulo VI. Mas isso foi antes de sair a Humanae vitae, quando ainda estava ocorrendo a discussão sobre o tema. Depois da publicação da encíclica, Luciani passou a defendê-la com vigor. Se a jornalista sabia disso e omitiu o fato na pergunta, foi malandra; se não sabia, deveria ter pesquisado mais antes de puxar um papa para a discussão.)

Mas, recentemente, a Pontifícia Academia para a Vida passou a tuitar freneticamente em defesa de uma publicação sua, chamada Ética teológica para a vida, que traz as atas de um congresso realizado em 2021 pela entidade e cujo tom bastante “reformista” surpreendeu até mesmo membros da Academia. No último fim de semana, o perfil oficial da PAV chegou a publicar uma afirmação segundo a qual o próprio Paulo VI teria dito a um arcebispo que a Humanae vitae não era ensinamento infalível. Aparentemente, a PAV apagou o tweet, mas o print é eterno:

Tuíte da Pontifícia Academia para a Vida sobre a infalibilidade da encíclica Humanae Vitae (Imagem: captura de tela/Twitter)
Tuíte da Pontifícia Academia para a Vida sobre a infalibilidade da encíclica Humanae Vitae (Imagem: captura de tela/Twitter)

Claro, lembremos que infelizmente o comando da PAV está nas mãos do arcebispo Vincenzo Paglia, aquele do mural homoerótico na catedral de Terni. Então, difícil saber se o fato de um órgão do Vaticano entrar no debate é indício de que realmente algo está para acontecer, ou se estamos apenas diante de um “progressista” com mais poder querendo fazer o assunto andar na marra.

No entanto, quero dividir com vocês um texto excelente que o padre José Eduardo publicou em seu perfil no Facebook, no qual ele discorre sobre o “status” do que está ensinado na Humanae vitae e faz comparações muito pertinentes com outros casos recentes, e que ele gentilmente me autorizou a republicar aqui na coluna:

Humanae vitae, infalível ou não?

Padre José Eduardo

Há muitas confusões geradas gratuitamente. Tentativas de desinformação, muitas delas intencionadas a causar alvoroço, quando não a legitimar rupturas inaceitáveis desde o ponto de vista da fé católica.

Desde ontem, diversas pessoas me perguntam se o Papa São Paulo VI considerava a encíclica Humanae vitae como infalível. Alegaram as memórias do arcebispo Lambruschini, em que consta o registro de que o papa Montini lhe dissera que não tinha a intenção de empenhar o carisma da infalibilidade nessa questão.

A abordagem me parece abertamente falaciosa. Explico.

É absolutamente manifesto que o último papa a empenhar o carisma da infalibilidade em uma definição dogmática foi Pio XII, quando proclamou o dogma da Assunção, em 1950. Desde então, nenhum outro papa o fez.

Não é porque o papa não empregou o carisma da infalibilidade em uma doutrina que ele não possa ensinar uma doutrina em si mesma infalível

Contudo, o sofisma é um tanto sofisticado para quem não tem habilidade lógica ou teológica: não é porque o papa não empregou o carisma da infalibilidade em uma doutrina que ele não possa ensinar uma doutrina em si mesma infalível, ainda mais quando, pela sua própria natureza, tal doutrina não requer o poder supremo do pontífice para que seja definida, poder que, no caso, se usado, seria abusivo e até ilícito.

Há muitas doutrinas infalíveis que não foram definidas infalivelmente.

Quando São João Paulo II escreveu a encíclica Evangelium vitae, os teólogos moralistas que o assessoraram – aliás, primores de rigor teológico e moral – contam o cuidado que teve a Igreja de usar o máximo grau da autoridade papal que era necessário, sem empenhá-lo para além deste limite, quer para não ultrajar o supremo poder magisterial pontifício, quer para não ultrajar a razão.

Por exemplo, quando São João Paulo II afirma: “com a autoridade que Cristo conferiu a Pedro e aos seus Sucessores, em comunhão com os Bispos declaro que o aborto direto, isto é, querido como fim ou como meio, constitui sempre uma desordem moral grave, enquanto morte deliberada de um ser humano inocente” (Evangelium vitae, 62), ele não está usando a fórmula da infalibilidade pontifícia, mas nitidamente está ensinando uma verdade infalível e definitiva.

Por que João Paulo II não usou a infalibilidade para promulgar um ensinamento infalível? Por um simples motivo: as verdades morais são verdades acessíveis pelo reto uso da razão. Empenhar a infalibilidade, neste caso, seria como “jurar por Deus” como meio de sustentar que 2+2=4, mutatis mutandis.

A infalibilidade da Humanae vitae pertence à natureza mesma deste ensino, que está em plena consonância com a doutrina católica de todos os tempos

Há outro caso bastante interessante. Em 1994, João Paulo II declarou: “em virtude do meu ministério de confirmar os irmãos, declaro que a Igreja não tem absolutamente a faculdade de conferir a ordenação sacerdotal às mulheres, e que esta sentença deve ser considerada como definitiva por todos os fiéis da Igreja” (Ordinatio sacerdotalis, n. 4).

Neste caso, mesmo não se tratando de uma verdade meramente racional, São João Paulo II não empregou o carisma da infalibilidade, pois isso seria um abuso: sendo a ordenação de mulheres completamente inexistente na Sagrada Escritura, na Tradição e no Magistério, é desnecessário declarar infalivelmente essa doutrina, apesar de ser definitiva e irreformável.

Deste modo, nenhum papa declarou ex cathedra que Deus existe ou que existe a alma, verdades que são absolutamente infalíveis.

É isso que ocorre quanto ao ensino da Humanae vitae. A sua infalibilidade pertence à natureza mesma deste ensino, que está em plena consonância com a doutrina católica de todos os tempos, especialmente com a encíclica Casti connubii, de Pio XI.

Quanto ao nosso dever de dar firme assentimento a essas verdades, diz a “Profissão de Fé” que deve ser realizada por todos aqueles que assumem ofícios canônicos: “e igual modo aceito firmemente e guardo tudo o que, acerca da doutrina da fé e dos costumes, é proposto de modo definitivo pela mesma Igreja” (§ 2).

Estamos aqui num campo seguro e bastante claro. A doutrina católica sobre a contracepção é totalmente lúcida e transparente

Comentando este trecho, afirma São João Paulo II: “É de máxima importância este parágrafo da Profissão de fé, dado que indica as verdades necessariamente conexas com a revelação divina. Estas verdades, que na perscrutação da doutrina católica exprimem uma particular inspiração do Espírito de Deus para a compreensão mais profunda da Igreja de alguma verdade em matéria de fé ou costumes, estão conexas com a revelação divina, quer por razões históricas, quer como consequência lógica” (Ad tuendam fidem, n. 3).

E, em Nota, acrescenta a Congregação para a Doutrina da Fé: “O objeto ensinado nesta fórmula abrange todas as doutrinas relacionadas com o campo dogmático ou moral, que são necessárias para guardar e expor fielmente o depósito da fé, mesmo que não sejam propostas pelo Magistério da Igreja como formalmente reveladas. Tais doutrinas podem ser definidas de forma solene pelo Romano Pontífice, quando fala ex cathedra, ou pelo Colégio dos Bispos reunido em Concílio, ou podem ser infalivelmente ensinadas pelo Magistério ordinário e universal da Igreja como ‘sententia definitive tenenda’. Todo o crente é obrigado, portanto, a dar a essas verdades o seu assentimento firme e definitivo, baseado na fé da assistência dada pelo Espírito Santo ao Magistério da Igreja e na doutrina católica da infalibilidade do Magistério em tais matérias. Quem as negasse, assumiria uma atitude de recusa de verdades da doutrina católica e portanto já não estaria em plena comunhão com a Igreja Católica”.

Portanto, estamos aqui num campo seguro e bastante claro. A doutrina católica sobre a contracepção é totalmente lúcida e transparente. E ela é “definitive tenenda”.

A perseguição à Igreja na Nicarágua

O ditador Daniel Ortega está afundando cada vez mais na perseguição aos católicos. Agora, o bispo Rolando Álvarez, de Matagalpa, no norte do país, está sendo mantido prisioneiro em sua própria cúria diocesana desde a última quinta-feira, com forças policiais cercando o prédio. Diversas conferências episcopais latino-americanas já manifestaram sua solidariedade ao bispo.

Ortega, nunca é demais lembrar, tem o apoio entusiasmado do PT, partido do ex-vereador curitibano Renato Freitas, cassado depois de invadir uma igreja após uma missa e, lá dentro, atacar os católicos por terem apoiado a eleição de Jair Bolsonaro (pois é, não foi apenas uma “ocupação pacífica” limitada a protestar contra o racismo). Pois não é que Freitas vai acabar se encontrando com o papa? O ex-vereador foi convidado para um evento sobre a iniciativa “economia de Francisco”, em que economistas e líderes se reúnem para debater as propostas do papa para uma atividade econômica que respeite a dignidade humana. Como o próprio Freitas falou em “coincidência da vida”, já podemos descartar de antemão qualquer ligação com a invasão da igreja ou a cassação, como se o Vaticano ou o papa estivessem querendo se solidarizar com o petista. Mas, convenhamos, quem está organizando esse negócio ou é muito desinformado, ou é muito ingênuo, ou é muito esperto (no mau sentido da palavra) para fazer esse convite nesse momento.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]