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Enquanto estivermos celebrando o Natal na semana que vem, será muito fácil perder de vista que temos um verdadeiro privilégio: comemorar o nascimento de Cristo sem medo de que um extremista invada a igreja e dispare contra os fiéis, de que uma bomba destrua o templo, ou de que a polícia de um ditador esteja esperando para levar todos à cadeia. Essa, no entanto, é a realidade de muitos católicos no mundo todo – e não apenas no Natal, mas o ano inteiro.
A fundação pontifícia Ajuda à Igreja que Sofre socorre cristãos perseguidos e em situações de extrema necessidade desde 1947, quando o padre holandês Werenfried van Straaten fundou a organização, inicialmente com foco maior nos católicos perseguidos atrás da Cortina de Ferro. Hoje, a Ajuda à Igreja que Sofre (ACN, na sigla em inglês) está em 130 países; no Brasil, é presidida desde 2020 pela advogada Ana Manente, que, em entrevista por escrito à coluna, falou do trabalho da ACN, dos riscos enfrentados por cristãos e de como podemos ajudar.
Nós estamos celebrando o Natal em paz, mas onde são os locais no mundo hoje onde os católicos mais correm perigo se quiserem comemorar o nascimento de Cristo?
Muitos católicos irão participar da missa de Natal com medo de que alguém entre na igreja atirando em todos; ou, ainda, que uma bomba exploda durante a celebração. Isso já aconteceu, por exemplo, na Nigéria, no Natal de 2023, quando mais de 290 pessoas foram assassinadas em ataques coordenados durante as missas da meia-noite. Datas celebrativas como Natal, Páscoa e Corpus Christi são especialmente visadas pelos terroristas.
“A perseguição religiosa normalmente vem de quatro tipos de agentes: governos autoritários, extremismo religioso, nacionalismo étnico-religioso e o crime organizado. Hoje, os principais perseguidores são os governos autoritários.”
Ana Manente, presidente da ACN no Brasil
De acordo com os relatórios e as fontes da Ajuda à Igreja que Sofre, além da Nigéria e de outros países da África como Mali, Burkina Faso, Eritreia e o norte de Moçambique, há, infelizmente, muitos outros locais onde celebrar publicamente o Natal consiste em um verdadeiro risco à vida. É o caso de alguns países do Oriente Médio, como Paquistão e Iraque, onde a insegurança e a expulsão de comunidades cristãs continuam ameaçando a existência histórica da Igreja; o mesmo ocorre em países da Ásia sob regimes autoritários ou onde há crescimento do nacionalismo religioso, como China, Mianmar, Coreia do Norte e Índia.
O que nos comove é que os cristãos continuam firmes apesar da perseguição. Quando o cardeal paquistanês Joseph Coutts (hoje arcebispo emérito de Karachi) nos visitou, ele comentou que houve uma ocasião em que foram tantos os ataques a igrejas no fim de ano que ele decidiu cancelar a missa do Natal, para evitar mais atentados. Os católicos não aceitaram essa ideia e pediram que ele mantivesse as celebrações, pois preferiam morrer na igreja, rezando, do que viver sem celebrar o Natal.
Hoje temos muita atenção voltada para a Nigéria, mas que outras regiões ou países deveriam merecer nossa atenção?
Infelizmente, os nossos relatórios apontam que a cada ano a lista de países nos quais as pessoas não têm liberdade religiosa aumenta. De acordo com os dados de 2025, em 62 países as pessoas sofrem perseguição ou discriminação religiosa. Quem olhar o mapa das violações da liberdade religiosa verá que o nosso globo está quase que abraçado pelas cores vermelha (perseguição) e laranja (discriminação).
Regiões que merecem atenção contínua, como mencionei antes, são o Oriente Médio, como Iraque e Síria, onde por vezes temos medo de que os cristãos desapareçam se não vier uma ajuda maior; na África Subsaariana, países passaram a registrar mais ataques terroristas contra cristãos, como em Burkina Faso, Mali e Níger; preocupam-nos outros países da África, como Sudão, Etiópia e, mais recentemente, o norte de Moçambique; e países asiáticos onde o autoritarismo estatal e o nacionalismos étnico-religiosos atropelam a liberdade religiosa, como China, Mianmar, Paquistão e Índia. Na América Latina, Nicarágua, Cuba, Haiti, Venezuela e México são os países nos quais as violações à liberdade religiosa são mais preocupantes.

Nos países onde os católicos são mais perseguidos, normalmente a perseguição é de que natureza? Extremistas de outras religiões, regimes antirreligiosos, ou algum outro tipo de ameaça?
A perseguição religiosa normalmente vem de quatro tipos de agentes: governos autoritários, extremismo religioso, nacionalismo étnico-religioso e o crime organizado. Hoje, os principais perseguidores são os governos autoritários. Eles são a maior ameaça não só para os católicos, mas para a liberdade religiosa como um todo. Na Coreia do Norte, por exemplo, um momento de oração pode ser punido com detenção, tortura ou até mesmo execução. Mas não é só lá: governos autoritários que minam a liberdade religiosa estão presentes em 52 países!
Logo em seguida vem o extremismo religioso, que causa perseguições em 25 países. Um exemplo é Burkina Faso, na África, que viveu uma escalada da violência islamista. Só em 2024, mais de 1,5 mil pessoas foram assassinadas, dezenas de líderes religiosos foram sequestrados ou executados e mais de 30 paróquias foram fechadas.
Para entender melhor o que significa a perseguição extrema que um cristão pode sofrer, eu conto aqui a história da nigeriana Maryamu Joseph. Quando tinha 7 anos, foi sequestrada e passou nove anos nas mãos dos terroristas do Boko Haram, um grupo islamista radical. No dia do sequestro, depois de os extremistas assassinarem várias pessoas em sua comunidade, eles a obrigaram a caminhar 22 dias pela floresta. Lá, ela e outros cristãos foram colocados em gaiolas, submetidos à conversão religiosa forçada, proibidos de rezar, espancados e ameaçados de morte. Aos 10 anos, por recusar um casamento imposto, foi punida com um ano inteiro trancada em uma gaiola, recebendo comida apenas uma vez por dia. A violência brutal era constante: Maryamu testemunhou o assassinato de cristãos “como se fosse algo normal” e viu seu próprio irmão ser decapitado e esquartejado diante dela, cena que a levou a ter alucinações, pesadelos e terror permanente. Por quase uma década, viveu sob tortura, medo, fome, humilhações e violência extrema, acreditando que jamais sairia viva da Floresta de Sambisa.
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Só em 2022, aproveitando um momento de descuido dos extremistas, Maryamu fugiu, correndo por dois dias até desmaiar ao chegar à cidade de Maiduguri, onde foi acolhida em um centro de recuperação de traumas que existe graças à Ajuda à Igreja que Sofre. Após meses de tratamento e acompanhamento, a vida de Maryamu mudou; hoje, seu testemunho poderoso muda a minha vida! Ao lado de tantos outros que conseguiram escapar das mãos dos terroristas, Maryamu nos apresenta um mundo tão cruel e desconhecido como atual e presente. É impossível ficar indiferente e fechar os olhos para a perseguição religiosa.
No caso específico da Nigéria, tivemos um caso curioso no fim de outubro, quando o bispo Matthew Kukah disse – em um evento da ACN, inclusive – que era contrário à possibilidade de os EUA colocarem a Nigéria na lista de países que perseguem cristãos. Como vocês viram esse pronunciamento?
A Nigéria é o país mais populoso da África e enfrenta múltiplas crises sobrepostas. Lá, temos questões religiosas, étnicas, sociais e econômicas. Em algumas regiões, como no norte do país, os cristãos enfrentam discriminação severa e ataques direcionados; na região do Cinturão Médio, as tensões étnicas e religiosas se cruzam, a violência é extrema e recorrente; no sul, o sequestro de padres tem uma motivação simplesmente financeira e não religiosa. Logo, é possível entender que cada bispo tem o ponto de vista a partir da sua região, embora o bispo Kukah já tenha publicado uma outra declaração esclarecendo a situação, e afirmando que não teve a intenção de ser interpretado como se estivesse negando que os cristãos sejam perseguidos na Nigéria. Mais do que um posicionamento individual, é importante ouvirmos o que a Conferência dos Bispos da Nigéria nos diz, por meio da declaração intitulada “Paz na Nigéria: Da fragilidade à estabilidade”.
A Ajuda à Igreja que Sofre tem monitorado de perto o caso da China? A situação melhorou, piorou ou ficou na mesma desde o acordo do Vaticano com o governo chinês, assinado em 2018?
A situação piorou na China. Recursos digitais como monitoramento constante por câmeras e inteligência artificial têm sido utilizados para vigiar, traçar perfis e punir fiéis. O Partido Comunista Chinês intensificou sua política de sinicização, procurando alinhar as religiões com a ideologia socialista. O último relatório da Ajuda à Igreja que Sofre apontou que agora estão proibidos para os menores de 18 anos a catequese, retiros espirituais e mesmo atividades religiosas orientadas para a família. Crianças e adolescentes são proibidos de entrar em locais de culto e, em vários casos, escolas exigem que pais e alunos assinem declarações comprometendo-se a não se envolver em qualquer forma de prática religiosa.

A Ajuda à Igreja que Sofre também acompanha casos de países onde os católicos não chegam a sofrer perseguição física, mas vivem restrições de outra natureza, por exemplo processos por expressar determinadas opiniões?
Em 2016, o papa Francisco cunhou o termo “perseguição educada”: uma forma mais sutil que se manifesta geralmente por meio de pressões legais, culturais ou institucionais. Para mim, o termo “perseguição educada” já está desatualizado; a perseguição ideológica está cada vez mais agressiva.
Vemos claramente, por exemplo, a diminuição do direito à objeção de consciência. Na área médica, isto fica evidente. A Igreja Católica é o maior prestador não governamental de cuidados de saúde do mundo, responsável por cerca de 25% das unidades de saúde em nível global, sendo que em algumas regiões da África esta porcentagem chega a 70%. Instituições médicas católicas têm uma compreensão clara do direito à proteção da vida desde a concepção até o fim natural. Sendo assim, diretrizes que defendem o acesso ao aborto como um direito fundamental e que sugerem políticas para facilitar essa oferta e mesmo impor às instituições católicas a obrigação de financiar ou praticar abortos são um ataque frontal ao direito à objeção de consciência por parte das instituições médicas católicas, bem como dos seus profissionais.
Esta pressão pró-aborto é especialmente presente na União Europeia. Em 2024 a França aprovou uma emenda constitucional e incluiu explicitamente o direito ao aborto na Constituição; o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos emitiu decisão contra a Polônia, considerando que as restrições severas ao aborto no país violam direitos humanos. No Reino Unido, pessoas já podem ser presas por rezar em silêncio em áreas próximas a clínicas de aborto. Na Suécia, é comum a demissão de profissionais da área da saúde que se negam a praticar abortos.
“As ajudas que damos são prioritariamente pastorais, e não assistenciais. Apoiamos a fé, o pastoreio, a formação, a evangelização. Nossos três pilares são informação, oração e ação.”
Ana Manente, presidente da ACN no Brasil
Como a Ajuda à Igreja que Sofre ajuda os cristãos nesses lugares?
A cada ano a ACN apoia mais de 5 mil projetos em cerca de 130 países, sem um único centavo de verba pública; todos os recursos vêm de doações de pessoas como eu e você, que generosamente partilham seus bens para socorrer os que mais sofrem.
O nosso diferencial é que as ajudas que damos são prioritariamente pastorais, e não assistenciais. Apoiamos a fé, o pastoreio, a formação, a evangelização. Nossos três pilares são informação, oração e ação. Levamos para o mundo – pelo YouTube, programas de televisão e rádio, visitas a igrejas e entrevistas como esta – as notícias da Igreja que mais sofre pelo mundo, seja por miséria extrema, catástrofes, guerras ou perseguição. Quem conhece estas realidades é convidado a rezar por elas; a oração está no cerne da nossa obra, e é ela quem transforma a informação em ação concreta – no caso, as doações.
Temos escritórios de arrecadação de recursos em 24 países, incluindo o Brasil. Com os recursos captados, ajudamos a Igreja nos mais de 130 países que mencionei. Nossos projetos incluem centros de cura de traumas para os cristãos que sofreram os horrores da perseguição; construção e reconstrução das estruturas da Igreja em regiões de guerras e catástrofes naturais, como já aconteceu no Iraque por conta da guerra, no Haiti por conta do terremoto ou das enchentes no Rio Grande do Sul, e em diversas regiões da África por conta do terrorismo; formação e sustento para sacerdotes, religiosas, seminaristas e lideranças leigas que estão nas regiões mais pobres e perigosas do mundo, e muitas vezes não têm nem sequer um prato de comida para matar a fome (e mesmo assim não abandonam a missão de evangelizar).

É importante lembrar que a Ajuda à Igreja que Sofre não atua apenas no contexto de perseguições, mas também onde os cristãos vivem em estado de extrema necessidade. Aqui no Brasil, por exemplo, já mencionei nossa atuação após as enchentes no Rio Grande do Sul, mas também apoiamos cerca de 260 projetos por ano, sobretudo no Norte e Nordeste. No sertão nordestino e na Região Amazônica, é comum os bispos nos pedirem ajuda para a compra de meios de transporte para que os missionários possam chegar às comunidades mais distantes. Em suma, ajudamos com tudo o que for necessário para a sobrevivência e fortalecimento da fé onde a Igreja mais sofre.
Como os brasileiros podem ajudar a Ajuda à Igreja que Sofre?
Primeiro, rezando por toda a Igreja que sofre; depois, doando para a ACN. É possível fazer uma doação pontual ou tornar-se doador mensal. Um simples pix (chave colabore@acn.org.br) pode fazer a diferença para uma criança que irá receber uma Bíblia pela primeira vez na sua vida, pode salvar a vida de um menino que foi escravizado por terroristas e resgatado por um sacerdote na África, pode permitir que um catequista no sertão pernambucano tenha uma bicicleta para levar o Evangelho para mais uma comunidade. A experiência de quem doa para a Ajuda à Igreja que Sofre é muito semelhante à do menino que entregou os cinco pães e dois peixes nas mãos de Jesus. A partir daquele gesto, Jesus alimentou milhares.
Neste Natal, por exemplo, estamos com uma campanha para ajudar os catequistas nas regiões mais difíceis do mundo. Em Burkina Faso, na África, com uma doação de R$ 63 é possível alimentar a família de um catequista que se dedica quase que integralmente a ajudar os outros e muitas vezes não tem o que comer. Sua doação para a ACN faz muita diferença, salva vidas e alimenta almas.
Um santo Natal aos leitores!
Esta é a última coluna de um ano bastante intenso – não só por ter sido um ano jubilar, mas também por causa da morte do papa Francisco e da eleição do papa Leão XIV, acontecimento que tive a bênção de presenciar pessoalmente em Roma – espero que vocês tenham gostado da nossa cobertura especial, aqui na coluna, nas transmissões ao vivo direto da Praça de São Pedro, nas participações na programação da Gazeta do Povo no YouTube, e nas breves entradas no Meio Dia Paraná, da RPCTV. Teremos uma pausa de duas semanas, e desejo a todos os leitores um santo Natal; que possamos celebrar sempre tendo em vista o verdadeiro sentido da festa!








