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Graças a Deus não gastei meu dinheiro vendo Conclave no cinema e esperei sair no streaming (está no Amazon Prime). Teria desperdiçado dinheiro – e tempo também, se não fosse escrever sobre o filme aqui para a coluna. O longa, que foi indicado a oito Oscars e saiu com um, o de Melhor Roteiro Adaptado, é ardiloso porque é tecnicamente ótimo: um tremendo visual, um elenco de primeira, um suspense bem construído... mas tudo para passar uma visão da Igreja e do próprio conclave que está bem longe da realidade.
(Aviso: contém spoilers, talvez mais que o necessário)
O protagonista do filme é o cardeal Thomas Lawrence (Ralph Fiennes), decano do Colégio Cardinalício e responsável por organizar um conclave após a morte do papa – o nome do pontífice falecido não é revelado, mas do que se fala dele fica implícito que é alguém com um perfil parecido ao de Francisco. Ao longo das votações, candidaturas se fortalecem e desmoronam, enquanto os cardeais se envolvem em intrigas que vão muito além das conversas e articulações naturais que caracterizam uma eleição papal.
“Conclave” é ardiloso porque é tecnicamente ótimo: um tremendo visual, um elenco de primeira, um suspense bem construído... mas tudo para passar uma visão errada da Igreja e do próprio conclave
De cara, vemos um contraste maniqueísta entre os ditos “liberais” e os “conservadores”: o italiano Tedesco (Sergio Castellitto) não passa de um grosseirão, potencialmente xenofóbico e racista, e até sua fisionomia é diferente dos demais, com aquele cabelo desgrenhado; o nigeriano Adeyemi (Lucian Msamati), por sua vez, é um homofóbico hipócrita, com um esqueleto no armário que acaba com suas chances no conclave. Já os “liberais” parecem melhores: seu candidato preferido, Bellini (Stanley Tucci), começa dizendo que não quer ser papa, mas que parte para o sacrifício apenas para impedir que Tedesco vença – só mais adiante ele admite que ambiciona, sim, o trono pontifício, diluindo seu desejo afirmando que, no fundo, todo cardeal sonha com isso.
Lawrence, apoiador de Bellini, não tem limites: viola os apartamentos do papa falecido (que são selados após a morte) atrás de algum podre de um outro candidato, vota em si mesmo em determinado momento (o que é proibido), e viola até o sigilo da confissão (o que lhe renderia uma excomunhão automática). Mas, como é tudo por uma boa causa... no fim, um candidato inesperado acaba eleito. Como falei, um enredo cheio de suspense bem construído, mas cuja fidelidade ao que poderia ocorrer em um conclave real se resume à ambientação e aos detalhes cerimoniais, como todo o ritual que envolve a votação.
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Acontece que, se o enredo fosse fiel ao Direito Canônico, um dos personagens centrais da trama nem estaria no conclave, já que cardeais in pectore só podem eleger um novo papa se o seu nome é revelado publicamente antes do falecimento do pontífice anterior. Além disso, o “isolamento” a que os cardeais são submetidos no filme é tudo, menos isolamento – todo mundo interfere, o entra-e-sai é constante, não cardeais ficam sabendo das tramoias dos eleitores... por fim, o plot twist mais importante do filme tornaria a eleição papal potencialmente inválida, o que colocaria a história toda a perder. Fora os erros menores, como uma missa Pro Eligendo Pontifice celebrada apenas entre os cardeais, quando o costume é celebrá-la com povo, na Praça de São Pedro (aliás, nem se vê altar na cena dessa missa).
A grande inverossimilhança, no entanto, é transformar o conclave em um House of Cards pontifício, uma disputa de facções inescrupulosas pelo poder total. Ninguém reza em Conclave (a não ser diante do papa morto e antes das refeições). O Espírito Santo só aparece na boca do cardeal que vê suas chances ruírem quando faltava muito pouco para a vitória, invocado hipocritamente em uma tentativa desesperada de convencer Lawrence a não interferir. Não há um pingo de senso sobrenatural em nada ali. Só a politicagem em sua forma mais baixa. Com os “conservadores” ostensivamente vilanizados, e os “liberais” não se saindo muito melhor (são eles os que manipulam os outros eleitores e chantageiam os cardeais mais votados), no fim das contas sobra para a Igreja como um todo, já que ninguém realmente presta – talvez nem mesmo aquele que acaba recebendo os votos necessários para a eleição, pois só chegou lá graças a uma mentira que Lawrence e os demais não conseguiram descobrir a tempo.
Com os “conservadores” ostensivamente vilanizados, e os “liberais” não se saindo muito melhor, no fim das contas sobra para a Igreja como um todo, já que ninguém realmente presta
O “programa de governo” que o filme gostaria de ver implantado na Igreja – a real, não a do filme – é aquele exposto pelo cardeal Bellini em uma reunião com seus apoiadores, na qual eles definem como a campanha eleitoral será feita. Nem preciso detalhá-lo ao leitor, que já o conhece, pois o lê em praticamente toda a imprensa, a cada novo conclave; basta dizer que ele se resume em aceitar tudo o que a Igreja não aceita, e promover tudo o que ela não promove. O cardeal recém-chegado ainda completa, em outro momento importante do filme, dizendo que “a Igreja não é tradição, a Igreja não é o passado, a Igreja é o que faremos a partir de agora” – quando todo cardeal sabe, ou deveria saber, que a Igreja é o Corpo Místico de Cristo. E, em sua homilia pré-conclave, Lawrence diz que “a certeza é inimiga da verdade”, quando só pode haver unidade na verdade.
Isso sem falar do ataque grosseiro a Bento XVI, quando um cardeal diz a outro que “já tivemos um papa da Juventude Hitlerista e que lutou pelos nazistas”. O jovem Joseph Ratzinger de fato foi da Juventude Hitlerista? Foi, como todo menino era obrigado a ser. Ele lutou na guerra? Sim, foi convocado e serviu em uma bateria antiaérea e na infantaria, mas fugiu na primeira chance, como bom filho de um bom antinazista. Está tudo em sua autobiografia.
Não à toa o bispo Robert Barron disse que Conclave era “um filme sobre a Igreja Católica que poderia ter sido escrita pela equipe editorial do New York Times”. Com um conclave real se aproximando, o mundo todo poderá ver pela televisão a Capela Sistina real, os cardeais com suas vestes vermelhas, os rituais de juramento... ao menos até o extra omnes; já será mais que suficiente para não precisarmos recorrer a um filme enviesado que não ajuda em nada a termos uma noção do que ocorre quando aquelas portas se fecham.