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O papa e o presidente ucraniano já haviam conversado por telefone, mas foi a primeira vez que se falaram pessoalmente desde o início da guerra.
O papa e o presidente ucraniano já haviam conversado por telefone, mas foi a primeira vez que se falaram pessoalmente desde o início da guerra.| Foto: EFE/EPA/Vatican Media handout

Enquanto conversava com jornalistas no voo em que retornava de sua viagem à Hungria, no fim de abril, o papa Francisco entregou uma manchete à imprensa do mundo todo. Falando sobre a guerra na Ucrânia, revelou: “estou disposto a fazer o que for preciso. Mesmo agora está em curso uma missão, mas ainda não é de domínio público... Veremos. Falarei dela, quando se tornar pública”. Se não estivéssemos tratando de algo tão sério, haveria até muita graça no fato de Francisco dar publicidade mundial a algo ao mesmo tempo em que anunciava seu caráter secreto. Pura indiscrição ou estratégia calculada? Impossível saber. Mas, depois de uma série de negativas iniciais tanto de Moscou quanto de Kyiv, parece que o Vaticano está mesmo empenhando sua diplomacia em um esforço para encerrar a guerra.

Francisco não teve um bom começo, em se tratando da guerra na Ucrânia. Deu uma série de declarações ambíguas, insinuando que a Rússia tinha sido provocada pelo Ocidente ou pela Otan, mas depois passou a ter uma postura bem mais firme de condenação à agressão russa – resultado, muito provavelmente, dos relatos recebidos dos cardeais que o próprio papa enviou à Ucrânia e da interlocução constante com o arcebispo-maior de Kyiv-Halyč, Sviatoslav Shevchuk. De vez em quando ainda ocorrem algumas escorregadas, como a de março deste ano, quando Francisco disse a um canal de televisão que “interesses imperiais, não apenas do império russo, mas de impérios de outros lugares” estavam alimentando a guerra. Mas, em termos gerais, é inegável que Francisco evoluiu muito em sua compreensão do que está ocorrendo na Ucrânia, ao contrário de um certo anão diplomático.

Quando Zelensky insiste que seu plano é a única forma possível de encerrar o conflito, dá a entender que a Ucrânia não tem interesse em qualquer sugestão que outros atores, inclusive o Vaticano, tenham para dar

Neste fim de semana, o papa recebeu o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, no Vaticano – os dois já tinham conversado por telefone desde a invasão russa, mas ainda não haviam se encontrado pessoalmente. Depois da audiência, Zelensky afirmou que contava com o esforço de ajuda humanitária da Igreja Católica, que exortou o papa a não igualar moralmente agressores e vítimas, e que desejava o apoio papal ao plano de dez itens que a Ucrânia divulgou no fim do ano passado, e que inclui respeito à integridade territorial ucraniana, o estabelecimento de um tribunal para julgar crimes de guerra russos, a devolução de prisioneiros e o retorno de civis deportados, e recuperação da infraestrutura ucraniana. Isso é especialmente relevante, pois, quando Zelensky insiste que este plano é a única forma possível de encerrar o conflito, dá a entender que a Ucrânia não tem interesse em qualquer sugestão que outros atores, inclusive o Vaticano, tenham para dar.

De fato, o plano ucraniano contém demandas que são o mínimo do mínimo em um caso como esse. Aceitar que a Rússia saia dessa com um quilômetro quadrado que seja de território ucraniano é dizer que a brutalidade compensa. Abandonar as crianças ucranianas separadas de suas famílias e deportadas é uma crueldade sem tamanho. Mas existe uma hierarquia nos dez pontos de Zelensky que vai do essencial ao negociável. Se o Vaticano tem um plano e, em caso positivo, o quanto esse plano coincide com o da Ucrânia, isso o papa soube guardar direitinho.

Por ora, parece que ninguém anda interessado no que o Vaticano tem a propor – convenhamos, por mais que Francisco tivesse razão em chamar de “coroinhas de Putin” os clérigos ortodoxos russos favoráveis à invasão, não é bem o tipo de declaração que ajuda a amansar um dos lados envolvidos na guerra. Mas, no Crux, John Allen Jr. lembra que Bento XV também foi ignorado quando propôs sete pontos para encerrar a Primeira Guerra Mundial, embora seis meses depois parte de suas ideias tivessem sido incorporadas no plano do presidente norte-americano Woodrow Wilson, e no fim os esforços do papa acabaram reconhecidos e elevaram o status da diplomacia vaticana. Se Francisco conseguir algo parecido, já terá valido a iniciativa.

Coluna em férias e uma sugestão de leitura

O colunista volta em 20 de junho. Até lá, se o leitor quiser, pode se entreter com a coletânea de entrevistas A razão diante do enigma da existência, que reúne quase 30 entrevistas feitas para o outro espaço que tenho aqui na Gazeta do Povo, a coluna sobre ciência e fé Tubo de Ensaio, que em 2023 completa 15 anos. O livro também está disponível na Amazon.

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