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No próximo sábado, o papa Leão XIV completa 100 dias de pontificado. Esta se tornou uma marca simbólica no mundo da política: em pouco mais de três meses, um novo mandatário já teve tempo suficiente de começar a imprimir a própria marca de governo, e muito frequentemente já o fez, na forma de nomeações para cargos importantes, projetos colocados em prática e coisas do tipo. A tentação de transpor essa categoria política para o papado é enorme, e não faltam analistas tentando “ler” os rumos do atual pontificado com base no que Leão XIV já fez desde 8 de maio. Uma tarefa difícil, por dois motivos: o primeiro, porque a Igreja não funciona com as categorias da política; e, segundo, porque o papa ainda não fez nada de muito significativo neste sentido até agora.
Pontificados não são como mandatos políticos. Um novo presidente ou primeiro-ministro pode estar sucedendo alguém de um partido de orientação ideológica totalmente contrária, e por isso haverá de chegar chutando a porta em muitos aspectos, alterando políticas públicas, trocando pessoas em postos-chave (e muitos desses nomes são anunciados até mesmo antes que o novo governo assuma) etc. Um papa não é assim: ele pode ter ideias diferentes de seu antecessor a respeito de como governar a Igreja ou de que temas devem ser prioritários, mas há uma continuidade no fato de todo novo papa ser mais um sucessor de Pedro que do pontífice que veio antes; e que, por isso mesmo, há uma fé que deve ser guardada por todo novo chefe da Igreja. Se na política é comum termos rupturas drásticas, é irreal esperar que o Vaticano funcione da mesma forma.
Também ao contrário do mundo político, a Igreja não tem um “período de transição” entre um pontífice que está para sair e outro que vai assumir, com a equipe de um passando informações importantes à equipe do outro; ninguém nem sequer sabe quem será o novo papa até que ele esteja de fato eleito. Então, é muito natural que Leão XIV ainda esteja tomando pé da situação global da Igreja; por mais que ele já fosse da Cúria Romana, estava lá havia apenas dois anos. Além disso, dentro desses primeiros 100 dias tivemos o tradicional período de férias de verão, que é levado muito a sério na Itália. Nenhum papa “desliga” totalmente dos assuntos da Igreja durante esses dias, mas tudo anda em marcha lenta.
Na ausência de indicadores definitivos do rumo que o pontificado terá, o que temos são grupos tentando “puxar” o papa para o seu lado preferido
O que temos, então? À exceção de um ou outro cargo, todos que terminaram o pontificado de Francisco à frente de algum organismo da Cúria seguem interinamente em seus postos; Leão XIV não indicou nem mesmo o seu substituto no Dicastério para os Bispos – em comparação, Bento XVI escolheu um novo prefeito para a Congregação para a Doutrina da Fé no segundo mês de pontificado. Houve um punhado de nomeações episcopais, algumas das quais provavelmente já estavam acertadas antes do falecimento de Francisco. Talvez o documento mais significativo destes primeiros 100 dias seja aquele com as diretrizes para a fase final do processo sinodal, que vai até 2028 – e, enquanto há quem veja aí um sinal claro de continuidade com as prioridades de Francisco, outros vaticanistas ressaltam que Leão XIV pode ter uma compreensão diferente (e ainda não tornada pública) do que seja, afinal, essa tal “sinodalidade”.
Na ausência de indicadores definitivos do rumo que o pontificado terá, o que temos são grupos tentando “puxar” o papa para o seu lado preferido. Uns apontarão para as opções litúrgicas do papa em termos de vestimentas ou de tradições, ou para escolhas e mensagens que prestigiam este ou aquele cardeal. Outros, inclusive peixes grandes vaticanos, jogam pressão do outro lado – como fez o cardeal Victor Fernández, que disse a um jornalista italiano em julho que Leão XIV não mexerá em Fiducia supplicans, uma afirmação que, para o vaticanista Andrea Gagliarducci, parece menos uma reprodução fiel do pensamento do novo papa e mais uma forma de “amarrar” Leão XIV a tudo o que foi publicado no pontificado de Francisco. No sentido contrário, o mesmo Gagliarducci cita um rumor segundo o qual um novo documento sobre “vários temas marianos” teria sido devolvido pelo papa à mesa do cardeal Fernández para alterações substanciais. Enquanto isso, há bispos mais conservadores, como Joseph Strickland, que parecem já estar perdendo a paciência com Leão XIV por causa de certas nomeações ou certas demoras para promover um desejado “revogaço”.
De qualquer forma, não podemos nos esquecer que Leão XIV foi eleito em um conclave dominado – a julgar pelo que vazou das congregações gerais – pelo tema da unidade na Igreja. Não podemos esperar que ele vá antagonizar abertamente um grupo enquanto privilegia outro; o mais provável é que ele busque um equilíbrio, sempre sem se desviar do depósito da fé. Enquanto isso, vamos acompanhando suas mensagens, suas homilias, e rezando para que tenhamos um pontificado como Deus deseja, e não como nós queremos, nem como os outros querem.
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Grupo de fiéis leigos pede que CNBB se pronuncie sobre abusos do STF
A União Apostólica Cardeal Leme, um grupo de fiéis leigos sediado no Rio de Janeiro, colocou na plataforma Change uma petição on-line dirigida à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Intitulada “Súplica em defesa da Pátria e do povo brasileiro”, a carta afirma que vivemos tempos de “confusão moral, inversão de valores, perseguição a inocentes, silenciamento de vozes legítimas, cerceamento da liberdade religiosa e um crescente abismo entre a verdade e a realidade pública”, acrescentando que os católicos “se sentem órfãos de uma palavra profética que ilumine, denuncie e anuncie, com caridade, mas também – e sobretudo – com coragem, a verdade”.
O texto pede à CNBB, e também aos bispos individualmente, que denunciem os abusos cometidos pelo STF; que “deem voz aos injustiçados do ‘8 de janeiro’, e aos perseguidos políticos de forma geral, que têm sofrido abusos sistemáticos e recebido condenações absurdas e desproporcionais”; que “reajam à censura prévia e injusta, por meio da qual se tenta calar um espectro político inteiro da nação”; e que “despertem os fiéis e a sociedade em geral para o risco real da consolidação de uma tirania judiciária que vem se estabelecendo de forma cada vez mais evidente em nosso país”, entre outros itens.
A petição tem quase 1,5 mil assinaturas até a publicação da coluna, e o presidente da União Apostólica Cardeal Leme, Pedro Affonseca, disse à coluna que, embora a quantidade seja importante, não há uma meta específica. “O mais importante é conscientizar os fiéis, ajudá-los a avaliar o que está acontecendo à luz da fé católica, e impeli-los a fazer algo. É a qualidade que importa mais”, afirma. Affonseca justifica o pedido aos bispos explicando que “a doutrina e o Catecismo são claros no sentido de que o clero deve se manifestar em matéria política, econômica e social sempre que houver flagrante ofensa à dignidade da pessoa humana e aos direitos naturais dos cidadãos”, e que “independentemente de posição política, é inquestionável que vivemos em um regime ditatorial – capitaneado pelo Judiciário, especialmente o STF, aliado ao Executivo e com a omissão do Legislativo – que viola a dignidade das pessoas”.
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Não tenho o que tirar nem pôr à avaliação de Affonseca sobre o cenário atual, que é exatamente como ele descreve. E concordo totalmente que, sem a mobilização de entidades da sociedade, incluindo a CNBB, não haverá mudança no curto prazo. Mas sempre fui meio cético quanto a petições on-line, e acho muito difícil que algo assim pudesse levar a CNBB a se manifestar da forma desejada. Seria preciso criar um movimento entre os próprios bispos, que chegasse à cúpula da conferência episcopal. Felizmente, isso também faz parte da estratégia do grupo. “Enviamos a mesma carta por e-mail a todas as dioceses, e repassei o texto por WhatsApp a bispos com quem tenho mais contato. Recebi poucas respostas, mas quem respondeu foi unânime a respeito do nosso diagnóstico, dizendo que é nosso papel nos manifestar e reagir ao que está acontecendo”, diz Affonseca. A União Apostólica Cardeal Leme ainda pretende entregar cópias do texto diretamente ao presidente da CNBB, dom Jaime Spengler, a outros membros da diretoria e aos presidentes das regionais da conferência.
Affonseca tem ciência de que um apelo pelos direitos dos perseguidos políticos pode render ao grupo pechas como “bolsonarista” ou “extrema direita”. “Podemos ser rotulados, mas será um rótulo falso. Não se trata de defender Bolsonaro, nem estamos vinculados ao seu movimento político; o nome dele nem está citado na carta”, rebate o presidente da União Apostólica Cardeal Leme. “Qualquer cidadão de bem, independentemente de posição política, há de reconhecer que o momento é grave e delicado; nossa carta não é sobre este ou aquele indivíduo, mas sobre a violação sistemática dos direitos de muitos brasileiros, e que pede uma reação embasada na doutrina católica, especialmente na Doutrina Social da Igreja”, conclui.











