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O cardeal norte-americano Raymond Burke (em foto de 2012)
O cardeal norte-americano Raymond Burke (em foto de 2012) foi avisado pelo Vaticano de que terá de pagar aluguel ou sair do apartamento que ocupa em Roma.| Foto: Juanjo Martín/EFE

Lembram de 2016, quando a esquerda adotou como canto de guerra o “não vai ter golpe”? Bom, teve golpe, mas foi o do Senado e do Lewandowski, que preservaram os direitos políticos da presidente cassada ainda que a Constituição dissesse exatamente o contrário. Mas a coluna, obviamente, não é sobre Dilma Rousseff. É sobre a possibilidade de um grupo de católicos resolver se separar da Igreja, e sobre por que creio que isso não vá acontecer – ao menos não num futuro próximo, e ao menos não envolvendo os grupos que estão na boca do povo.

Nos últimos dias, viralizou em parte da catolicosfera a tradução de alguns trechos do artigo “Pope Francis and Schism”, publicado pelo sacerdote capuchinho Thomas Weinandy no site The Catholic Thing em 2019 – eu tenho lá minhas dúvidas se todos os que compartilharam o texto estavam atentos a esse detalhe. Àquela altura muitos católicos norte-americanos, e uma pequena parte da hierarquia católica naquele país, já estavam se bicando com o papa Francisco, e temos de admitir que a recíproca era verdadeira. Mas o padre Weinandy explicava que não haveria cisma norte-americano porque “eles reconhecem que ele [Francisco] é o papa e o sucessor de Pedro, e que permanecer na Igreja Católica é permanecer fiel ao papa”.

Um cisma alemão não deve ocorrer porque a estratégia dos “sinodais” exige que eles permaneçam formalmente dentro da Igreja para atingir seu objetivo de mudar a doutrina e a prática católicas

Quando o artigo foi publicado, o “caminho sinodal” alemão estava prestes a começar, e já se sabia que tipo de loucura seria proposto lá. Mas também não haveria cisma alemão, dizia o padre Weinandy, porque “muitos na hierarquia alemã sabem que, ao se tornarem cismáticos, eles perderiam sua voz e identidade católicas, e isso é algo que eles não podem permitir”. Tenho dito a mesma coisa aqui na coluna: a estratégia dos sinodais alemães exige que eles permaneçam formalmente dentro da Igreja para atingir seu objetivo de mudar a doutrina e a prática católicas. Se eles quisessem apenas ordenar mulheres ou abençoar todas as uniões que aparecessem pela frente, bastaria deixarem a Igreja, entrar em alguma outra denominação protestante que já fizesse isso, e todos viveriam felizes para sempre. Mas não se trata disso: os “sinodais” querem que a Igreja toda mude da forma como eles querem. E para isso eles não podem sair por conta própria.

Em outubro deste ano, o padre Weinandy escreveu uma “atualização” de seu artigo de 2019, “Pope Francis and Schism Re-Visited”, e este texto não está sendo mencionado junto com o anterior. “O que me preocupava quatro anos atrás não melhorou, mas piorou”, afirma o autor. O antagonismo entre o papa e os católicos norte-americanos aumentou, e os alemães não declararam um cisma formal, embora tenham entrado em um cisma prático. “O que [o ‘caminho sinodal’] propôs não está de acordo com a tradição magisterial imutável da Igreja, particularmente em termos de moral sexual, ordenação de mulheres e padres casados”, diz o padre Weinandy, “e nada foi feito para retificar os problemas doutrinais e morais”.

O novo artigo foi publicado um pouco antes do começo da primeira sessão do Sínodo sobre a Sinodalidade, antes das duas pauladas que o Vaticano deu no “caminho sinodal” alemão e antes de o papa Francisco “demitir” o bispo Joseph Strickland e retirar o apartamento romano e (possivelmente) o salário do cardeal Raymond Burke – outro crítico do processo sinodal em curso no Vaticano e um dos dois sobreviventes do quarteto de cardeais que enviou os primeiros dubia ao papa em 2016, pedindo esclarecimentos sobre alguns trechos da exortação Amoris laetitia. Embora até o momento não tenha havido nenhuma reação do cardeal Burke, a maneira como o bispo Strickland lidou publicamente com sua remoção apenas comprova o que o padre Weinandy havia dito quatro anos atrás. Quando havia apenas boatos sobre a “demissão”, não faltou quem usasse argumentos canônicos e teológicos para incitar Strickland a resistir caso fosse cortado; em vez disso, ele, em sua primeira entrevista, reconheceu que a decisão do papa deveria ser obedecida, e não tem promovido animosidade contra Francisco, exceto ao retuitar uma mensagem sobre como o papa estaria agindo de forma vingativa contra seus críticos enquanto recebe no Vaticano os dissidentes e os inimigos da Igreja, deixando “os fiéis perplexos e tristes”. Essa resignação me parece outro sinal de que não há um cisma norte-americano no horizonte, ainda que, como disse o padre Weinandy no artigo 2019, muitos gostariam de ver algo assim acontecer para poder marginalizar a posição conservadora como sendo anticatólica.

Que não tenhamos cismas formais prestes a ocorrer, no entanto, não significa que tudo esteja bem. Infelizmente tenho de concordar com o artigo de 2019 quando diz haver um “cisma interno” entre um grupo que, embora jamais questionando a legitimidade de Francisco, é crítico de muita coisa que vem acontecendo neste pontificado; e outro grupo que apoia incondicionalmente o papa justamente por causa de muita coisa que vem acontecendo neste pontificado. Onde eu me permito discordar do padre Weinandy é sobre o papel de Francisco nisso tudo.

Não posso dizer que há um projeto consciente de demolição do edifício doutrinal da Igreja por parte de Francisco

O capuchinho, em 2019, descrevia Francisco como alguém que é “o papa da Igreja Católica e, simultaneamente, o líder de facto, para todos os efeitos práticos, de uma igreja cismática (...) eu não acredito que o papa Francisco esteja, de forma alguma, receoso deste cisma. Enquanto ele estiver no controle, temo que ele o acolha, por ver o elemento cismático como o novo ‘paradigma’ para a Igreja do futuro”. Da minha parte, seguirei dando ao papa o benefício da dúvida. Não há como fechar os olhos para uma série de fatores, muitos deles listados pelo padre Weinandy – nomeações muito ruins para o Colégio de Cardeais, o desmantelamento de instituições vaticanas que eram referência em assuntos de vida e família, e por aí vai. Mas não posso dizer que há um projeto consciente de demolição do edifício doutrinal da Igreja por parte de Francisco; podemos muito bem estar diante de um processo que avança mais por uma omissão ou tolerância da parte do papa que por sua vontade ativa – embora também seja impossível para mim avaliar por que um papa simplesmente deixaria que algo assim ocorresse.

Até por isso concordo totalmente com o padre Weinandy quando, perto do fim de seu artigo de 2023, diz que “infelizmente, nesta situação complicada, muitos indivíduos e grupos católicos ultraconservadores estão condenando o papa Francisco de imediato. Isso não apenas é injusto para com ele, mas também impossibilita qualquer avanço”. Se tudo piorar muito, o máximo que devo me permitir é minha própria versão do “menefreghismo”, o genial termo que vi em um artigo sobre sedevacantismo dias atrás. O verbo italiano fregarsene significa “não se importar”; se um italiano diz “me ne frego”, quer dizer que não está nem aí para algo. Naquele texto, o “menefreghismo” era o de não se importar se a Sé Apostólica está vaga, legitimamente ocupada ou o que for; já o meu “menefreghismo” se limitará a absorver tudo de bom e ignorar tudo de esquisito que vier de Roma, seguir ensinando meus filhos a viver bem a fé, rezar (especialmente pelo papa) e esperar o temporal passar – porque um dia vai passar.

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