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Marcio Antonio Campos

Marcio Antonio Campos

Vaticano, CNBB e Igreja Católica em geral. Coluna atualizada às terças-feiras

Análise

Primeira homilia de Leão XIV usa um tema caro a Francisco, com uma pitada de Ratzinger

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O papa Leão XIV celebra sua primeira missa como pontífice na Capela Sistina, em 9 de maio. (Foto: EFE/EPA/Vatican Media handout)

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O papa Leão XIV celebrou, na manhã de hoje, sua primeira missa como pontífice, no mesmo local onde fora eleito, a Capela Sistina, e diante daqueles que o escolheram para o papado. Aos cardeais, Leão XIV chamou a Igreja de “arca de salvação que navega sobre as ondas da história” e “farol que ilumina as noites do mundo”, afirmando que ela só tem essa qualidade “não tanto pela magnificência das suas estruturas ou pela grandiosidade dos seus edifícios (...), mas pela santidade dos seus membros, do povo que Deus adquiriu”. Foi uma bela homilia, em que o novo papa estabeleceu uma série de contrastes entre a realidade atual e a proposta que a Igreja tem para a humanidade.

O evangelho da missa, tirado do relato de São Mateus, narra o episódio em que Cristo pergunta aos apóstolos quem os outros dizem que Ele é, e depois pede a opinião dos próprios apóstolos; é quando Pedro toma a dianteira e responde “tu és o Cristo, o Filho de Deus Vivo”, e ouve de Jesus a promessa de que a Igreja seria edificada sobre ele, Pedro. A pergunta sobre quem é Jesus, disse Leão XIV, continua a ser feita diariamente, a toda a humanidade. A primeira resposta é a de um mundo imerso em aparências e embriaguez pelo poder, um “mundo que considera Jesus uma pessoa totalmente desprovida de importância, quando muito uma personagem curiosa, capaz de suscitar admiração com a sua maneira invulgar de falar e agir. Por isso, quando a sua presença se tornará incômoda, devido aos pedidos de honestidade e às exigências morais que invoca, este ‘mundo’ não hesitará em rejeitá-lo e eliminá-lo”, afirma Leão XIV.

Entre tantos temas caros ao pontificado de Francisco, é especial que Leão XIV tenha escolhido o das “periferias existenciais”

Um segundo grupo, diz o papa, é o das “pessoas comuns” – o que inclui até mesmo muitos batizados, segundo Leão XIV –, para quem Jesus é “um homem justo, corajoso, que fala bem e que diz coisas certas, como outros grandes profetas da história de Israel”, mas ainda é apenas um homem, e por isso “no momento do perigo, durante a Paixão, também elas o abandonam e vão embora, desiludidas”. Leão XIV comparou essas pessoas àquelas que, em vez do seguimento de Jesus, “preferem outras seguranças, como a tecnologia, o dinheiro, o sucesso, o poder e o prazer”. Essa visão em que “Jesus, embora apreciado como homem, é simplesmente reduzido a uma espécie de líder carismático ou super-homem”, faz muita gente “viver (...) num ateísmo prático”.

Este trecho da homilia me lembrou demais as palavras do então cardeal Joseph Ratzinger, quando afirmou que “ter uma fé clara, segundo o Credo da Igreja, muitas vezes é classificado como fundamentalismo”. Vejam só o que diz Leão XIV: “ainda hoje não faltam contextos em que a fé cristã é considerada uma coisa absurda, para pessoas fracas e pouco inteligentes; (...) São ambientes onde não é fácil testemunhar nem anunciar o Evangelho, e onde quem acredita se vê ridicularizado, contrastado, desprezado, ou, quando muito, suportado e digno de pena”. A ridicularização da fé cristã – e aqui incluo também os evangélicos, frequentemente tratados como simplórios prontos a serem explorados pelo primeiro pastor ou político pilantra que aparecer – é uma marca do mundo moderno, e que Leão XIV tenha identificado esse problema é um sinal muito positivo.

E aqui o missionário que há dentro de Leão XIV fala mais alto: são justamente esses ambientes que mais precisam de Deus, e de quem O leve a eles. “a falta de fé, muitas vezes, traz consigo dramas como a perda do sentido da vida, o esquecimento da misericórdia, a violação – sob as mais dramáticas formas – da dignidade da pessoa, a crise da família e tantas outras feridas das quais a nossa sociedade sofre, e não pouco”, diz o papa, acrescentando que “este é o mundo que nos está confiado e no qual, como tantas vezes nos ensinou o papa Francisco, somos chamados a testemunhar a alegria da fé em Jesus Salvador”, que não é um super-homem nem um mero líder espiritual ou grande guia moral, mas o próprio Deus feito carne.

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Leão XIV conseguiu, assim, pegar um dos temas mais caros a Francisco, o das “periferias existenciais” (mesmo sem mencioná-lo pelo nome); uni-lo a uma das grandes preocupações de Bento XVI, a perda de sentido no mundo moderno e a crescente hostilidade à fé cristã; e juntá-los fazendo um apelo missionário que reflete sua biografia. E, para arrematar, disse que o cristão jamais será capaz de levar Cristo às pessoas se não estiver fortalecido “na nossa relação pessoal com Ele, no empenho em percorrer um caminho quotidiano de conversão”, e exigiu ainda mais de si mesmo, ao dizer que a função da autoridade religiosa é “desaparecer para que Cristo permaneça, fazer-se pequeno para que Ele seja conhecido e glorificado, gastar-se até ao limite para que a ninguém falte a oportunidade de O conhecer e amar”.

Uma bela homilia, e fico muito feliz de, entre tantos temas caros ao pontificado de Francisco, Leão XIV ter escolhido o das “periferias existenciais”, apontando um caminho missionário que passa por uma fé forte, não uma fé aguada, que suprime partes “inconvenientes” para se tornar mais palatável ao mundo moderno. O papa recorda que a fé não é algo irracional, coisa de simplórios, uma muleta para quem não é capaz de suportar com as próprias forças um mundo de sofrimento; é “luz admirável”, alegria e verdade.

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