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Da esquerda para a direita: o geneticista Jérôme Lejeune, o papa Pio XII e o arquiteto Antoni Gaudí, todos com processo de beatificação no Vaticano.
Da esquerda para a direita: o geneticista Jérôme Lejeune, o papa Pio XII e o arquiteto Antoni Gaudí, todos com processo de beatificação no Vaticano.| Foto: Fundação Jérôme Lejeune/Wikimedia Commons / Michael Pitcairn/Domínio Público / Pau Audouard Deglaire/Domínio público

Uma parte da boataria vaticana recente foi confirmada nesta segunda-feira, quando o papa Francisco realmente publicou uma carta apostólica pela ocasião dos 400 anos de nascimento de Blaise Pascal. Uma figura interessantíssima, que se destacou como matemático, mas que também ganhou notoriedade pelas suas incursões nas áreas da filosofia e da teologia, especialmente após uma experiência mística ocorrida quando ele tinha 31 anos, e cujos detalhes manteve ocultos até sua morte, oito anos depois. São famosos seus Pensamentos, obra que também inclui a sua “aposta”, segundo a qual, na dúvida, é mais vantajoso viver como se Deus existisse do que se Ele não existisse (resumindo bem grosseiramente o argumento) – curiosamente, a esmagadora maioria dos agnósticos que conheço acaba se comportando da forma contrária à proposta de Pascal...

Sublimitas et miseria hominis é uma leitura curtinha, em que Francisco exalta alguém que “desde criança e por toda a vida, procurou a verdade”, e que “continua a ser para nós o companheiro de estrada que acompanha a nossa busca da verdadeira felicidade e, na medida do dom da fé, o nosso reconhecimento humilde e jubiloso do Senhor morto e ressuscitado”. Embora diga que a carta não é a melhor ocasião de aprofundar o tema, Francisco não evita mencionar a ligação de Pascal com o jansenismo. O papa reconhece que “algumas das suas próprias [de Pascal] afirmações, relativas por exemplo à predestinação, tiradas da teologia do último período de Santo Agostinho, cujas fórmulas foram aperfeiçoadas por Jansênio, não soam como verdadeiras”, mas acrescenta que “Pascal acreditava sinceramente que então estava a atacar o pelagianismo ou o semipelagianismo, que ele julgava identificar nas doutrinas seguidas pelos jesuítas molinistas” e pede que “demos crédito à franqueza e sinceridade das suas intenções”.

E com isso chegamos à segunda parte da boataria, aquela que (ainda) não se concretizou. Alguns veículos de mídia católicos chegaram a dizer que estaria próxima uma possível beatificação de Blaise Pascal. A fonte, no caso, seria uma afirmação antiga de Eugenio Scalfari, falecido em 2022. O jornalista e fundador do diário La Repubblica havia comentado em 2017 que o papa lhe dissera ser favorável à beatificação de Pascal. Scalfari, no entanto, ganhou notoriedade por colocar palavras na boca de Francisco em mais de uma ocasião, a ponto de o Vaticano ter de vir a público desmentir Scalfari. O próprio jornalista admitiu que não fazia nenhuma anotação de suas conversas com o pontífice, e que escrevia de memória. Por que Francisco seguia falando com Scalfari mesmo depois de ter sido colocado em saias justas como a da “inexistência do inferno” para mim é um mistério, mas isso é lá com o papa.

O papa pode proclamar alguém bem-aventurado ou até santo dispensando a tradicional exigência da comprovação de um milagre obtido por intercessão da pessoa em questão

Não sei a quantas anda o processo de beatificação de Pascal no Vaticano – se é que existe um. Fato é que o papa pode proclamar alguém bem-aventurado ou até santo dispensando a tradicional exigência da comprovação de um milagre obtido por intercessão da pessoa em questão. Nos casos de martírio reconhecido, essa dispensa já é bastante comum, mas Francisco tem aberto mais exceções, como fez com São João XXIII e São José de Anchieta. E, já que é assim, faço três sugestões de beatificações que eu gostaria de ver num futuro próximo, com ou sem milagre comprovado.

Jérôme Lejeune

Assim como Pascal, Lejeune era homem de ciência e de profunda fé. Colocou seu monumental conhecimento em genética a serviço da humanidade, e descobriu que a causa da Síndrome de Down era uma anomalia cromossômica. Podia muito bem ter ganho um Prêmio Nobel, mas sua militância em favor da vida dos seres humanos mais vulneráveis de todos, os nascituros indefesos e inocentes, estava acima de seu desejo por reconhecimento. Lejeune chegou a dizer à esposa e à filha que havia “perdido o Nobel” depois de um discurso bastante incisivo em defesa da vida nos National Institutes for Health norte-americanos. Amigo de João Paulo II, foi escolhido pelo papa como primeiro presidente da Pontifícia Academia para a Vida e redigiu os estatutos da nova instituição – infelizmente, um trabalho que vem sendo demolido nos últimos anos. Em 2021, o papa Francisco assinou o decreto que reconhece as “virtudes heroicas” de Lejeune, tornando-o “Venerável Servo de Deus”, o último estágio formal antes da beatificação.

Pio XII

O papa mais caluniado e perseguido do século 20 merece se juntar a seus quatro sucessores já elevados à glória dos altares. O diplomata chamado a governar a Igreja num dos períodos mais difíceis da história recente soube fazê-lo com grande zelo. Seus esforços para proteger judeus da perseguição nazista lhe renderam, por ocasião de sua morte, diversas homenagens de personalidades judaicas, como Albert Einstein e a então chanceler israelense (e futura premiê) Golda Meir. No entanto, uma campanha de propaganda surgida dentro da Cortina de Ferro conseguiu que Pio XII se tornasse, na opinião pública, o “papa de Hitler”, mas a verdade vem sendo restabelecida aos poucos, inclusive graças a esforços de judeus como Gary Krupp e sua fundação Pave the Way. Já se disse à exaustão, inclusive durante pontificados anteriores, que Pio XII só não foi beatificado ainda por medo de melindrar a comunidade judaica – e Francisco tem uma ótima relação com o judaísmo desde os tempos de arcebispo de Buenos Aires. Mas, se isso for verdadeiro, temos de questionar: se os fatos estão do lado de Pio XII, se até o Memorial do Holocausto, em Jerusalém, já suavizou seus textos sobre o papa (embora ainda não lhe fazendo plena justiça), por que continuar cedendo a um melindre motivado por uma mentira?

Antoni Gaudí

A Sagrada Família, em Barcelona, não fica apenas na minha lista de cinco igrejas mais sensacionais que já vi; ela facilmente entre na minha lista de cinco lugares mais espetaculares onde já estive. Ela é obra de uma mente tão genial quanto devota, a do arquiteto catalão Antoni Gaudí. Um homem que amou a beleza, mas quis que em sua grande obra nada fosse apenas “belo pela beleza”: tudo precisava ter um significado que apontasse para o divino. Tanto era assim que o mero fato de trabalhar na construção da igreja já foi estopim para conversões, como a do arquiteto japonês Etsuro Sotoo. Ao celebrar missa na Sagrada Família, em 2010, Bento XVI afirmou na homilia que

“Neste ambiente, Gaudí quis unir a inspiração que lhe chegava dos três grandes livros que o alimentavam como homem, como crente e como arquiteto: o livro da natureza, o livro da Sagrada Escritura e o livro da Liturgia. Assim, uniu a realidade do mundo e a história da salvação, tal como nos é narrada na Bíblia e atualizada na Liturgia. Introduziu pedras, árvores e vida humana no templo, para que toda a criação se transformasse em louvor divino, mas ao mesmo tempo tirou os retábulos, para pôr diante dos homens o mistério de Deus revelado no nascimento, na paixão, na morte e na ressurreição de Jesus Cristo. Deste modo, colaborou genialmente para a edificação da consciência humana ancorada no mundo, aberta a Deus, iluminada e santificada por Cristo. E realizou algo que é uma das tarefas mais importantes hoje: superar a ruptura entre consciência humana e consciência cristã, entre existência neste mundo temporal e abertura a uma vida eterna, entre beleza das coisas e Deus como Beleza. Foi isto que realizou Antoni Gaudí, não com palavras, mas com pedras, traços, planos e cumes.”

Beatificar Gaudí (cujo processo está em Roma há 20 anos) não seria apenas reconhecer sua vida virtuosa, que vai muito além de sua genialidade arquitetônica; seria lembrar o mundo que, ainda nas palavras de Bento XVI, “a beleza é a grande necessidade do homem; constitui a raiz da qual brota o tronco da nossa paz e os frutos da nossa esperança. A beleza é também reveladora de Deus porque, como Ele, a obra bela é pura gratuidade, convida à liberdade e extirpa do egoísmo”; seria também uma mensagem a todos os que vêm contribuindo para a aridez crescente dos espaços sagrados mundo afora. Contra o minimalismo dos caixotes e galpões em que muitas igrejas modernas se transformaram, a arte de Gaudí é uma lição poderosíssima de como deve ser concebido e executado um local para o culto divino.

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