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No motu proprio Traditionis custodes, de 2021, o papa Francisco escreveu que “considerando os desejos manifestados pelo episcopado e tendo ouvido a opinião da Congregação para a Doutrina da Fé”, estava impondo restrições à celebração da missa tridentina. Na carta enviada aos bispos e que acompanhava o motu proprio, o pontífice afirmou que “as respostas [dos bispos a um questionário enviado pelo Vaticano] revelam uma situação que me preocupa e entristece, e me convence da necessidade de intervir (...) Respondendo a seus pedidos, tomo a firme decisão de abolir todas as normas, instruções, permissões e costumes que precediam o presente motu proprio”, em referência a Summorum pontificum, o texto de Bento XVI que facilitou a celebração da missa tridentina em 2007. Mas novos documentos revelados pela vaticanista Diane Montagna contam uma história diferente.
No último dia 1.º, Montagna (que os leitores da Gazeta do Povo já conhecem graças aos perfis de cardeais escritos por ela e por Edward Pentin antes do conclave de 2025) publicou o questionário enviado aos bispos de todo o mundo pela Congregação para a Doutrina da Fé em 2020, com perguntas sobre a quantas andava a aplicação de Summorum pontificum nas dioceses. A missa tridentina era celebrada ali? Por quem? Há uma necessidade pastoral real? Quais os pontos positivos e negativos? Deveria haver alguma mudança nas normas? O Vaticano nunca publicou o resultado dessa consulta – nem mesmo dados genéricos, como quantas dioceses responderam. A julgar pelo que afirmavam Traditionis custodes e a carta, a experiência estava sendo desastrosa. Mas é aí que entra o segundo documento publicado por Montagna.
Maioria dos bispos estava satisfeita, mas nem tudo era um mar de rosas
Um resumo das respostas preparado pela Congregação para a Doutrina da Fé indicava que “a maioria dos bispos que responderam ao questionário, e que implementaram generosamente e inteligentemente o motu proprio Summorum pontificum, manifestou sua satisfação (...) nos locais onde o clero tem cooperado de forma mais próxima com o bispo, a situação está totalmente pacificada”. O texto ainda destaca que a missa tridentina estava atraindo muitos jovens e recém-convertidos, atraídos pela solenidade e pela sacralidade da liturgia, além do silêncio que contrasta com um mundo bastante ruidoso. Além disso, muitas respostas destacam o crescimento de vocações sacerdotais nas instituições dedicadas à celebração da missa tridentina (Instituto Bom Pastor, Fraternidade de São Pedro, Instituto Cristo Rei etc.).
“A maioria dos bispos que responderam ao questionário, e que implementaram generosamente e inteligentemente o motu proprio Summorum pontificum, manifestou sua satisfação.”
Trecho do resumo preparado pela Congregação para a Doutrina da Fé e divulgado por Diane Montagna sobre a missa tridentina nas dioceses.
A maior parte dos bispos, afirma esse resumo, não pedia mudanças na situação corrente. “A maioria dos bispos que responderam ao questionário afirma que fazer mudanças legislativas em Summorum pontificum causaria mais malefícios que benefícios. Quaisquer mudanças – seja suprimindo, ou enfraquecendo as disposições do motu proprio – prejudicaria seriamente a vida da Igreja, recriando as tensões que o documento havia ajudado a resolver”, diz o texto. Um bispo filipino escreveu que os fiéis deveriam ter a liberdade para escolher.
Nem todas as dioceses estavam tendo experiências positivas, no entanto. O resumo menciona bispos que pediam a reversão de Summorum pontificum, porque o motu proprio “falhou em seu objetivo de fomentar a reconciliação”; alguns ainda mencionaram a atuação da Sociedade São Pio X (SSPX), o grupo fundado por Marcel Lefebvre e que não tem status canônico regular dentro da Igreja. Olhando a seleção de citações de respostas ao questionário, há menções a um certo “espírito de gueto”, com os fiéis ligados à missa tridentina recusando uma inserção mais profunda na vida paroquial; a uma sensação de “superioridade espiritual” da parte dos fiéis tradicionalistas; e a críticas ao Concílio Vaticano II ou ao missal de São Paulo VI. São todos fenômenos bem plausíveis – e, em alguns casos, tentações que não afetam apenas comunidades tradicionalistas, diga-se de passagem. Curiosamente, algumas das dioceses que reportaram esses problemas acrescentaram que já haviam encontrado formas de resolvê-los.
Muitas perguntas a responder
A pergunta mais imediata é: se de fato a maioria das respostas ao questionário mencionava experiências positivas, e se a maioria dos bispos não queria mudanças, por que Francisco publicou Traditionis custodes?
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Uma primeira possibilidade é a de que os documentos publicados por Diane Montagna sejam um retrato incompleto. O porta-voz da Santa Sé, Matteo Bruni, deixou implícita essa possibilidade durante uma entrevista coletiva em 3 de julho – o tema era a introdução da “Missa para o cuidado da criação” no Missal Romano, mas uma jornalista da EWTN perguntou sobre os documentos. Segundo o vaticanista Edward Pentin, Bruni afirmou: “não confirmo a autenticidade dos textos publicados, que presume-se serem parte de um dos documentos nos quais a decisão [de restringir a missa tridentina] se baseou, e dessa forma eles contribuem para uma reconstrução muito parcial e incompleta do processo de decisão [que levou a Traditionis custodes]. De fato, documentação adicional, outros relatórios confidenciais e o resultado de outras consultas foram depois acrescentados ao questionário citado e foram recebidos pelo Dicastério para a Doutrina da Fé”. Mas, se é assim, resolver o problema é molezinha: basta divulgar a papelada toda, que mostre o quadro completo. Só que, perguntado sobre essa possibilidade, Bruni desconversou.
Vamos supor, agora, que a documentação que Montagna conseguiu seja incompleta, mas que ainda assim a avaliação dos bispos fosse majoritariamente positiva – ou seja, mesmo que a Santa Sé liberasse todos os documentos, isso não mudaria em nada o que sabemos. Seria possível que o papa tivesse simplesmente sido enrolado pelo prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, que à época era o também jesuíta Luis Ladaria Ferrer? O cardeal Ladaria até agora não disse uma palavra a respeito, e o papa Francisco levou para o túmulo qualquer eventual versão sua sobre esse processo decisório. E, como cereja do bolo, à época de Traditionis custodes o prefeito da Congregação para o Culto Divino já era o inglês Arthur Roche, cuja antipatia pela missa tridentina é notória. Não dá para descartar de antemão a possibilidade de o papa ter confiado demais nos seus assessores; na verdade, Montagna já tinha sugerido algo ainda mais grave em 2021: que os inimigos da missa tridentina dentro do Vaticano haviam preparado um relatório paralelo, bastante negativo, para entregar ao papa e justificar a imposição das restrições.
O papa é o legislador supremo
“O papa pode fazer o que ele quiser” se tornou o argumento mais repetido nos últimos dias por quem pretendia desautorizar os conteúdos publicados por Diane Montagna. E é isso mesmo, de fato o papa é o legislador supremo na Igreja e não tem de prestar contas a ninguém, apenas a Deus. Em outras palavras, a consulta aos bispos não tinha nenhum caráter vinculativo; o papa poderia fazer o oposto exato do que os bispos sugerissem, e estaria no seu direito, porque só ele tem o poder das chaves. E é justamente por isso que, para mim, a história não fecha.
A hipótese de que Francisco soubesse do resultado real da pesquisa com os bispos e tivesse deliberadamente mentido ao criar uma justificativa para “Traditionis custodes” me parece a menos plausível
Por um momento, vamos descartar as duas possibilidades já levantadas: uma, a de que os dados completos da consulta contrariam o que Montagna publicou; duas, a de que os resultados da consulta eram favoráveis a Summorum pontificum, mas Francisco foi enganado e levado a pensar que eles eram contrários. Suponhamos que o papa soubesse os resultados verdadeiros da consulta e mesmo assim quisesse impor restrições à missa tridentina: ele não precisaria ter dado a entender que estava respondendo a um clamor da maioria dos bispos. O papa poderia apenas ter dito que, embora a maioria do episcopado tivesse experiências positivas, as poucas experiências negativas seriam suficientemente preocupantes para justificar Traditionis custodes; ou, então, que ele estava plenamente convicto de que o Novus Ordo deve ser a única lex orandi da Igreja latina (ideia que Francisco manifestou não só em Traditionis custodes, mas também em Desiderio desideravi), e por isso era preciso ir restringindo a missa tridentina. Se os argumentos fazem sentido, pouco importa; o papa estaria exercendo sua autoridade da mesma forma.
De todas as possibilidades que analisamos acima, a de que o papa soubesse que os bispos estavam em geral satisfeitos com a aplicação de Summorum pontificum, e mesmo assim tenha mentido deliberadamente, inventado uma justificativa falsa para Traditionis custodes e alegando que as restrições impostas por ele à missa tridentina eram um pedido do episcopado, é a que me parece menos plausível. Como também duvido muito que Diane Montagna fosse comprometer toda a sua credibilidade de vaticanista inventando documentos, a verdade me parece estar em algum outro lugar. Mas descobri-la dependerá de muita coisa, inclusive de mais transparência por parte do Vaticano.
Francisco não se resume a Traditionis custodes
Por fim, uma bela dica de leitura: se você não perdoa Francisco pelas restrições que ele impôs à missa tridentina, você precisa ler o relato de Susanna Spencer no National Catholic Register (não confunda, o Register é bom; o “liberal” é o National Catholic Reporter) sobre como a leitura da última encíclica de Francisco, Dilexit nos, a levou a “fazer as pazes” com o papa que restringiu a missa tão querida por ela.
Coluna volta em 22 de julho
O colunista sai para uma semana de férias, então não teremos a coluna do dia 15. Voltamos na terça-feira seguinte!








