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Por que a “missa para o cuidado da criação” é uma boa ideia

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O papa Leão XIV durante missa de ordenação de novos sacerdotes, em 27 de junho. (Foto: Fabio Frustaci/EFE/EPA)

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Na quinta-feira, o Vaticano divulgou o decreto do papa Leão XIV que acrescenta, no Missal Romano, a Missa pro custodia creationis (“Missa para o cuidado da criação”). O cardeal Michael Czerny, prefeito do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral, e o arcebispo Vittorio Viola, secretário do Dicastério para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, deram entrevista coletiva para apresentar o decreto e os novos textos litúrgicos. Antes mesmo da divulgação, já havia parte da catolicosfera surtando e dizendo as maiores barbaridades, que isso era rendição à Agenda 2030, ao globalismo, ao que for; que, se era pra fazer isso, era melhor o conclave ter eleito a menina Treta (não, ninguém disse isso, é um exagero retórico meu, mas que dá ideia do clima apocalíptico de alguns sites). Então, vamos esclarecer o alcance disso e mostrar por que eu gostei da iniciativa.

Textos litúrgicos são de uso opcional

Todo dia do calendário litúrgico católico tem suas orações e leituras próprias para a celebração da missa. As solenidades, as festas de santos, tudo isso tem seus textos próprios. Além disso, há uma série de missas pro variis necessitatibus vel ad diversa. Até quinta-feira, havia 49 dessas missas: 20 pela Igreja (por exemplo, pelo papa, pelos sacerdotes ou pelas vocações), 17 para circunstâncias da vida pública (por exemplo, durante guerras, em tempo de fome, para pedir chuva ou pelo governante), e 12 para necessidades particulares, como pelos doentes ou em ação de graças.

Essas missas podem ser rezadas a critério do padre ou do bispo local em determinados dias – se não me engano, elas não podem substituir a missa do domingo, das solenidades e das memórias obrigatórias. A missa pro custodia creationis vem se juntar a esse conjunto, e está incluída no segundo grupo, o das missas para circunstâncias da vida pública. Ou seja, ela é algo opcional, que faz parte de uma seção com várias outras missas semelhantes. No big deal.

As orações e leituras escolhidas pelo Vaticano para a “missa para o cuidado da criação” destacam o papel criador de Deus e criticam quem coloca a natureza acima de todo o resto

Reparem que a missa pro custodia creationis não é a mesma coisa que a instituição de uma festa litúrgica que um grupo de católicos pretendia pedir ao papa Francisco. Sobre isso, ainda não há definição alguma. O cardeal Czerny e o arcebispo Viola até mencionaram a possibilidade de usar a nova missa em 1.º de setembro, Dia Mundial de Oração pelo Cuidado da Criação, mas é uma sugestão; a missa pro custodia creationis pode inclusive ser celebrada em outras datas, e o papa Leão XIV vai fazê-lo no próximo dia 9, uma quarta-feira, em Castel Gandolfo, onde ele fará seu descanso de verão.

Textos não “divinizam” a criação nem nada parecido

O Vaticano já publicou traduções dos textos originais (que são em latim) para alguns idiomas. Não são traduções oficiais, mas sugestões caso alguém já queira celebrar a missa pro custodia creationis antes que a respectiva conferência episcopal aprove uma tradução definitiva. Vejam lá, não tem nada escandaloso. As antífonas destacam o papel de Deus como criador e salvador, as orações pedem para que saibamos cuidar melhor da criação, e as leituras, bem, foram tiradas da Bíblia, e aí não tem erro, certo? Aliás, foram escolhas bem interessantes: a leitura do livro da Sabedoria critica o erro dos que, vendo a criação, “tomaram essas coisas por deuses” e ignoraram o verdadeiro Criador; o trecho da carta de São Paulo aos colossenses afirmando que em Cristo é que “foram criadas todas as coisas nos céus e na terra, as criaturas visíveis e as invisíveis”; e duas passagens do Evangelho de São Mateus: a do “olhai os lírios do campo”, e uma em que Jesus acalma uma tempestade, destacando o domínio divino sobre a criação. Nada mau!

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E vamos aproveitar para ler a mensagem que Leão XIV publicou no dia 30, para o Dia Mundial de Oração pelo Cuidado da Criação. O papa denuncia o mau uso dos recursos naturais, a destruição, a ganância e os conflitos, para logo depois dizer: “Estas várias feridas devem-se ao pecado” (destaque meu). Vocês imaginam uma afirmação dessas vindo, sei lá, do Fórum Econômico Mundial? Aliás, antes que alguém tente criar contraposições falsas entre Leão XIV e Francisco, o ponto central da Laudato Si’ era o de que a crise ambiental é consequência da crise moral, como eu mesmo destaquei quando o texto foi publicado. Releiam o capítulo 3 da encíclica, e vejam que nenhum globalista ou coisa que o valha teria escrito o que está lá.

Cuidado com o meio ambiente é pauta cristã

Já disse aqui várias vezes e repito: a obrigação com o cuidado do meio ambiente é bíblico, como também lembra o papa Leão citando seu antecessor. Se hoje o ambientalismo é associado à esquerda, é apenas porque deixamos a esquerda sequestrar essa pauta para si. Mas, assim como Roger Scruton já mostrou que um ambientalismo conservador é possível, é preciso também que levemos adiante um ambientalismo cristão, em que recuperemos nosso papel de cuidadores da criação que Deus nos deu e saibamos hierarquizar corretamente as coisas, sem divinizar a natureza, nem negar nosso papel único e especial dentro da criação – outro dos pontos importantes de Laudato Si’. Outra leitura que recomendo muito é a mensagem do papa Bento XVI para o Dia Mundial da Paz de 2010, com o título “Se queres cultivar a paz, preserva a criação”.

Então, sim, a inclusão de uma missa para o cuidado da criação no Missal Romano é uma boa ideia, e espero que os padres e bispos se lembrem de rezá-la de vez em quando – aliás, muitas dessas missas pro variis necessitatibus vel ad diversa podiam ser melhor aproveitadas, mas isso já não é assunto para uma coluna de ciência e fé...

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