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A disputa entre Donald Trump e Joe Biden pela Casa Branca tem despertado mais atenção do que uma corrida à presidência dos Estados Unidos naturalmente provoca. Tal interesse e uma resistência generalizada em admitir o favoritismo do candidato democrata têm a mesma origem: o trauma provocado pela vitória republicana há 4 anos.
Em 2016, os indícios da virada que levou Trump a se tornar o homem mais poderoso do mundo não passaram despercebidos, todavia o resultado da apuração chocou de tal forma que o pleito virou referência. Deveria ser entendido como exceção.
O atual presidente americano era então um acontecimento. Ninguém estava preparado para sua conduta deseducada, por vezes até agressiva. Do outro lado, uma rival reconhecidamente antipática, que dava razão à narrativa antissistema e buscava o terceiro mandato seguido pelo Partido Democrata.
Além disso, da interferência russa ao vazamento de e-mails de campanha, passando pelos atentados terroristas em Benghazi, os fatos novos que surgiram ao longo da disputa serviram para machucar a candidatura de Hillary Clinton.
O panorama mudou. Ninguém mais se surpreende com a retórica de Donald Trump. Pelo contrário, há rejeição, como as pesquisas realizadas após o debate da semana passada apontaram.
Contudo mora nos cisnes negros da vez a maior diferença entre 2016 e 2020.
Até o fim do ano passado, a estratégia do Partido Republicano estava desenhada: surfar no pleno emprego e alardear a ameaça que a esquerda radical representava para o estilo de vida e os valores americanos.
O primeiro revés veio com a vitória acachapante de Joe Biden nas primárias. A nomeação de Bernie Sanders ou mesmo de Elizabeth Warren teria sido mais conveniente, uma vez que o vice-presidente tem um perfil centrista. Ainda assim, o momento da economia não permitia grandes preocupações. Só uma calamidade impediria a reeleição.
Pois a calamidade aconteceu.
A pandemia não só fez uma retração histórica, como também escancarou o fracasso do governo para administrar crises. Trump chegou a garantir que o vírus desapareceria por milagre, receitou métodos de cura ineficazes, ironizou o uso de máscaras, demorou a tomar medidas de socorro às vítimas e se contrapôs aos cientistas. O saldo não poderia ser diferente: em nenhum lugar do mundo houve tantos infectados. Ninguém morreu mais do que os americanos.
Em meio à disseminação do vírus, novos casos de brutalidade policial contra negros provocaram protestos que se alastraram por todo o país. Novamente o presidente falhou em administrar a situação, usando de força desmedida contra manifestantes.
Como se o quadro já não estivesse suficientemente trágico para quem enfrenta um referendo, dois eventos recentes ajudaram a deteriorar ainda mais a situação: primeiro o livro recém-lançado de Bob Woodward revelou que, embora publicamente Trump minimizasse os riscos da doença, tinha total noção de sua letalidade.
E então veio o diagnóstico positivo para Covid-19.
O momento não poderia ser pior para as pretensões dos republicanos, porém o trauma é forte. Capaz, até mesmo, de provocar miragens.
Criticar Trump seria um erro, pois consolidaria a sua imagem; Trump é Bolsonaro; Biden, um Alckmin senil; Sanders teria mais chances; a estratégia do law & order definiria a disputa; a vaga na Suprema Corte seria um divisor de águas; a vacina salvará o presidente e por aí vai.
Os argumentos que sustentam um otimismo em relação às chances de reeleição não conversam com a lógica, mas talvez funcionem para aquietar a preocupação de muitos em poder dizer que não foram pegos de surpresa caso o improvável aconteça. Tolice.
Trump preside um país que historicamente reelege seus mandatários. Pode vencer, apenas não faz sentido ignorar as evidências.
Elas indicam que os Estados Unidos terão um novo presidente a partir do ano que vem.