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Créditos: Reprodução/Facebook (Petra) e Agência AFP (Damares)
Créditos: Reprodução/Facebook (Petra) e Agência AFP (Damares)| Foto:

Talvez seja impossível listar todos os prejuízos impostos pelo clima de polarização que desde 2013 abafa o menor gesto na direção do bom senso, do diálogo e até mesmo da tolerância. Um par deles, contudo, parece ter virado hábito: primeiro distinguem-se prejulgamentos por trás de críticas; em seguida promove-se uma espécie de justiçamento por meio da atribuição de rótulos. Ironia das ironias, sobra dureza, embora o intuito seja justamente o de socorrer vítimas da inflexibilidade. É como se, no afã de combater situações incabíveis em uma sociedade que se quer civilizada, as pessoas estabelecessem um código de inclemência bem-intencionado.

Na semana que passou, dois casos ilustraram esse cenário. Um deles envolveu a cineasta Petra Costa, diretora de “Democracia em Vertigem”, na disputa deste domingo pelo Oscar de melhor documentário, e o jornalista Pedro Bial. O outro, a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, os evangélicos como um todo e o meu dileto amigo Pedro Fernando Nery, que além de economista brilhante é dono de um dos melhores textos na imprensa brasileira.

Começando pela ordem e tirando da frente possíveis arestas, Petra Costa tem todo o direito de produzir filmes e por meio deles expor sua visão de mundo. Inclusive na categoria documentário, embora a expectativa nesse caso seja por um relato em comunhão com a realidade. Todavia a diretora e quem defende a sua película por enxergar nela a extensão de uma campanha com o intuito de absolver a esquerda, o PT e Lula deveriam exibir uma casca mais grossa e aguentar as críticas. Especialmente as sinceras e mordazes.

Pois houve de tudo, exceto maturidade em face ao esbregue de Bial. O que um naco considerável da esquerda fez foi pinçar termos utilizados em uma entrevista para, não só desqualificar a crítica, mas tachá-la de machista e paternalizadora. “Mãe” e “menina” em especial, dentre algumas das alegorias usadas pelo jornalista ao se posicionar sobre o filme, tornaram-se espantalhos perfeitos para mudar o foco do debate: Petra ofereceu um mundo tão paralelo quanto aquele em que vivem pessoas capazes de usar a Secom para intimidá-la.

A estratégia não foi exatamente nova. Tampouco quem se encontra à esquerda no espectro ideológico detém seu monopólio. Constatar o eco por ela alcançado para além da bolha ideológica, entretanto, foi alarmante: será que Bial teria usado “menina” se Petra fosse homem?, houve quem perguntasse, em óbvio tom retórico. Falar em “mamãe” apenas demonstra o quanto as mulheres, principalmente as mais jovens, ainda enfrentam preconceito, garantiram outros. Acima de tudo, faltou respeito. Criticar as mensagens embutidas no filme tudo bem — chegaram a consentir para arrematar em seguida —, mas Bial usou de um tom inadequado.

Não foi contemplada a hipótese de que os reparos deixassem de esconder motivos obscuros.

Momento semelhante se repetiu dias depois, quando o texto de Pedro Fernando Nery, “crentefobia”, ganhou publicidade. Desnecessário dizer que o tema proposto no artigo é sensível. Igualmente, parece-me inevitável reconhecer que, sim, há preconceito em relação ao grupo reconhecido como “evangélicos” — ainda que seja equivocado encará-lo como um bloco homogêneo — e, de maneira mais direta, à ministra Damares Alves.

À reflexão proposta pelo Pedro, acrescento: esse defeito de comportamento, uma espécie de asco estético-intelectual, não parte apenas da patota descolada em Laranjeiras ou na Vila Madalena. Pode ser verificado em toda a nossa intelligentsia.

É claro que o sujeito deve poder tirar do próprio bolso para financiar charlatões e instituições milionárias que abusam de mentes incautas sem ser importunado. Assim como enxergar no aborto um puro e simples assassinato, não importando o motivo da intervenção, é direito inviolável. Idem sobre condenar as preferências sexuais de outras pessoas, frequentemente rotulando-as como aberrações e inimigas da palavra de Deus — ainda que isso alimente reações violentas e até mortes.

Vale dizer, também Damares Alves deve se expressar livremente, de acordo com a sua consciência e premissas estabelecidas pela sua fé. Lamentar que a Igreja tenha “deixado a teoria da evolução entrar nas escolas” foi um bom exemplo disso. Afirmar que na Holanda estimula-se a masturbação de bebês com 7 meses, outro. Celebrar aos gritos e pulinhos que meninos passariam a usar azul e meninas a usar rosas, mais uma fiel amostra.

Está tudo certo. Dentro das balizas estabelecidas pela Justiça, cada um pode se manifestar como bem entender. O que não pode acontecer, ou pelo menos deveríamos começar a enxergar como deletério para o debate público, é esse sufocamento de opiniões a partir da automática premissa de que elas camuflem preconceitos.

Só um perfeito irresponsável seria capaz de negar a forte presença do machismo na nossa sociedade. Assim como a rejeição aos evangélicos, embora nem todos se insurjam contra os constantes ataques às religiões afro-brasileiras.

O documentário dirigido por Petra, apesar de tudo isso, continuará sendo um apanhado de balelas a serviço de um culto ideológico. Assim como várias das manifestações de Damares, e de muitos que militam na sua religião, escancaram o quanto ainda flertamos com o atraso e o obscurantismo medievais.

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