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Foto: Marcos Correa / PR
Foto: Marcos Correa / PR| Foto: Marcos Correa

Deixando de lado as repercussões já esperadas nos extremos sobre o vídeo da reunião ministerial ocorrida no dia 22 de abril, bolsonaristas endossando o conteúdo e opositores reprovando, percebe-se uma questão de expectativa: para quem esperava uma ‘bala de prata’, a decepção.

Vale lembrar, entretanto, que as imagens só ganharam relevância com a denúncia feita pelo ex-ministro Sérgio Moro de que o presidente desejava interferir na superintendência da Polícia Federal no Rio de Janeiro, da qual aguardaria relatórios atualizados.

O vídeo impõe duas constatações: a primeira que Moro disse a verdade; a segunda, que Bolsonaro mentiu. Não foi uma bala de prata, mas governos nunca morrem de véspera.

Dia 12 de maio, ensejando a sua já clássica tática de enviar sinais trocados para cobrir as bases, Jair Bolsonaro declarou: “Vocês vão se surpreender quando esse vídeo aparecer […]. Não existe no vídeo a palavra ‘Polícia Federal’ e nem ‘superintendência’.”

Três dias depois, com o encaminhamento feito pela Advocacia-Geral da União (AGU) ao Supremo de transcrições de falas em que os termos “PF” e “Família” apareciam, o discurso mudou: “Ô cara, tem a ver com a Polícia Federal, mas é a reclamação 'PF' no tocante ao serviço de inteligência.”

O valor do vídeo não se encerra na revelação do tom do presidente e comandados durante suas colocações. Ou na falta de sensibilidade dispensada a um momento em que dezenas de milhares de pessoas morrem vítimas da pandemia (destaque aqui para a pensata inescrupulosa de Ricardo Salles). Ou ainda na fartura de colocações que avançaram contra o Estado democrático de direito (embora nesse ponto Abraham Weintraub devesse colocar as barbas de molho).

Acima de tudo isso, o vídeo escancara, pelo menos em dois momentos, a sanha do presidente por fazer da Polícia Federal um reduto de arapongas a seu dispor:

“Já tentei trocar gente da segurança nossa no Rio de Janeiro oficialmente e não consegui. E isso acabou. Eu não vou esperar foder minha família toda de sacanagem, ou amigo meu, porque eu não posso trocar alguém da segurança na ponta da linha que pertence à estrutura. Vai trocar; se não puder trocar, troca o chefe dele; não pode trocar o chefe, troca o ministro. E ponto final. Não estamos aqui para brincadeira.”

E depois:

“Eu não posso ser surpreendido com notícias. Pô, eu tenho a PF que não me dá informações. Eu tenho as... as inteligências das Forças Armadas que não tenho informações. Abin tem os seus problemas, tenho algumas informações. Só não tenho mais porque tá faltando, realmente, temos problemas, pô!”

O vídeo é relevante porque reforça um contexto. Está diretamente ligado, por exemplo, à troca de mensagens entre Sérgio Moro e a deputada federal Carla Zambelli (PSL) na qual a independência da Polícia Federal foi explicitamente afrontada.

Também se relaciona à conversa por WhatsApp em que Jair Bolsonaro, após a divulgação de uma notícia sobre inquéritos da PF envolvendo aliados, pressionou o então ministro da Justiça por mudança no comando da corporação: “mais um motivo para troca."

E, claro, para que o cenário se complete, não é possível ignorar o desfecho tão almejado pelo presidente: com a saída de Moro e a demissão de Maurício Valeixo, o nome preferido de Bolsonaro para comandar a Polícia Federal era o de Alexandre Ramagem, amigo da família. O ministro Alexandre de Moraes barrou a indicação, alegando violação dos princípios da impessoalidade, da moralidade e do interesse público na sua nomeação, mas esse imprevisto foi  contornado com a indicação de Rolando Alexandre de Souza, subordinado de Ramagem na Abin. Caminho aberto para que a superintendência do Rio finalmente ganhasse um novo chefe. Souza acabou escolhendo Tácio Muzzi para o cargo.

A matéria do Estadão publicada na noite deste sábado (23), comprovando que na manhã do dia 22 Bolsonaro enviou mensagens para Sérgio Moro avisando que a demissão de Valeixo já estava decidida — “Moro, Valeixo sai esta semana”, escreveu o presidente, “Está decidido”, encerrando com “Você pode dizer apenas a forma. A pedido ou ex oficio (sic)” — derruba a narrativa que Bolsonaro tenta empurrar de que o próprio então diretor-geral da PF havia pedido pela troca.

“Eu e o doutor Valeixo conversamos por telefone e ele concordou com a exoneração a pedido. Desculpe, senhor ministro, o senhor não vai me chamar de mentiroso”, disse o presidente da República dois dias depois da reunião ministerial, durante um dos pronunciamentos mais escalafobéticos de um mandatário de que se tem notícia na história recente do Brasil.

Como se vê, Jair Bolsonaro mentiu.

O vídeo deveria ser observado como o que de fato é: uma peça importante na construção de uma linha temporal em que fica comprovada a ação do presidente da República para interferir na Polícia Federal de modo a proteger os seus. E se assim não se dá, talvez seja um sinal dos tempos.

Quem sabe se, por força do hábito, de tão acostumados com incontáveis afrontas e bizarrices, não estamos perdendo a capacidade de pasmar diante de situações que em outras épocas seriam inadmissíveis?

Pode ser, mas percepções não mudam os fatos. E o fato é que as acusações de Sérgio Moro têm cabimento.

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