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Nestes dias, nada mais é comum ou ordinário
| Foto: Arte: Marcos Tavares/Thapcom

Com menos eventos acontecendo nas nossas vidas, com dias mais parecidos entre si, temos menos parâmetros para nos localizar no tempo. Quando lembro de algo que fiz, alguma conversa que tive, até um livro que li, me pergunto: isso foi durante a pandemia? Foi este ano mesmo? Tudo que “aconteceu” parece ter acontecido antes.

Algo que vivi em março parece um passado remoto.

Em abril, as pessoas estavam agitadas.

Em maio, os esperançosos diziam “tá acabando!”

Em junho, muitos desabafaram “chega!”

Em julho todos os registros mostraram que “chega” coisa nenhuma.

Em agosto, nos resignamos e torcemos.

O futuro continua à frente. A vida segue, ainda que diferente. Não há mal que dure para sempre. Não há pandemia que dure para sempre – isto não é pensamento mágico; é a história da ciência quem diz. Mas por enquanto, é a pandemia que formata nossos dias.

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No escasso registro de novidades, a antecipação da primavera merece ser notada. Com pouca chuva, as plantas se apressam em florescer e garantir a disseminação de suas sementes. Os vegetais sabem que se a seca se prolongar, morrerão. Então, jasmins e glicínias antecipam suas floradas, violentas de tão perfumadas. A floração do jasmineiro está tão adiantada que deve acabar nos próximos dias. A glicínia tem cachos de botõezinhos. Hoje vi frutinhas pequenas na amoreira. Normalmente é em setembro que aparecem.

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Instalei um comedor para passarinhos no quintal. Olho para ele dez vezes ao dia para ver se tenho visitas, se alguma criatura plumada saboreia as frutas que deixei lá. Até este momento em que escrevo, só vi um sabiá, o pássaro mais comum da minha vizinhança. Aliás, o mais comum nas cidades brasileiras. Não foi uma surpresa, portanto. O sabiá canta em Curitiba como cantava nas palmeiras de Gonçalves Dias. Minhas expectativas são altas. Espero ver canarinhos amarelos e tucanos de bico verde. Sei que eles estão por aí, mas ainda não aceitaram meu convite para o banquete de mamão, banana e laranja.

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Sinto falta de ver um filme no cinema, de circular em outra cidade que não a minha. Sinto falta de tomar café no Mercado Municipal.

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Estou gastando menos porque saio muito pouco e, consequentemente, não vivencio o impulso das compras, a provocação das vitrines. Bom para meu bolso, ruim para os comerciantes. Afinal, não sou só eu que estou nesta situação. Por isso não preciso ler estatísticas para saber que a vida dos comerciantes está difícil.

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Vendedores ambulantes estão por toda parte. Compro deles, qualquer coisa. Balinhas, mexericas... É tanta mexerica que já fiz suco e bolo da fruta. Tudo muito bom. Mexerica é como sabiá, está por toda parte e merece nosso respeito.

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A consciência de que a vida de tantas pessoas está ficando mais difícil porque falta trabalho e dinheiro é a segunda nuvem negra sobre esses dias. A primeira é o vírus em si.

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Dois vizinhos morreram recentemente. Dona Felicitá e seu Romualdo. Não foi por causa do vírus. Em tempos normais, eu teria ido nos velórios. Dá uma sensação de que fiquei devendo algo para aquelas famílias amigas.

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O último encontro com amigos no sábado de carnaval, o dia passado no Quartelá, um almoço na cidade da Lapa com o filho, a visita ao meu amado tio que mora em Campo Mourão. Quem diria que esses passeios despretensiosos se tornariam os grandes momentos do ano, as grandes aventuras?

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Me emociono com as palavras da escritora bielorrussa Svetlana Aleksiêvitch, ao falar de Chernobyl: “Escrevo os relatos dos sentimentos cotidianos, com palavras cotidianas. Tento captar a vida cotidiana da alma. A vida ordinária de pessoas comuns. Mas aqui nada é ordinário...”

Exatamente!

A vida cotidiana, a nossa vida, as palavras... a aparência do mundo e os nossos recursos para viver nele e retratá-lo continuam os mesmos. Mas nada é ordinário nesses dias. Nosso cotidiano é como uma peça de porcelana quebrada e remendada. Parece normal, mas o encaixe não é perfeito. Algo está ligeiramente fora do lugar.

Svetlana Aleksiêvitch – que escritora fantástica! – está falando de um lugar onde houve um acidente nuclear. Ninguém estava preparado para aquela situação em que o inimigo é a radiação que “não se vê, não tem cheiro nem som”.  Em um trecho lindo, ela descreve o que vê em torno de Chernobyl: “...os jardins floresciam, a relva brilhava alegremente à luz do sol. Os pássaros cantavam. Um mundo tão... familiar.”

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Se o ser humano tem um estabilizador interno, que vai nos ajustando às mudanças que encontramos no curso da vida, este dispositivo tem trabalhado demais. Nos últimos anos, ele opera o tempo todo, principalmente para quem tem mais de 30 anos (uso esta idade como uma referência, pode ser um mais ou menos). Quem é mais jovem está se ajustando ao mundo pela primeira vez. Os mais velhos já se ajustaram várias vezes e, a cada mudança, precisam se calibrar. É a calibragem que me refiro desde a forma de falar, do que é permitido pela sociedade e o que não é, o que fazemos no dia a dia (para nos informar e para contatar amigos, por exemplo), tudo tem mudado com muita frequência. Não uma vez, mas várias.

A pandemia é um grande buraco na estrada, que nos faz sacolejar, que desestabiliza. Nosso estabilizador interno está trabalhando o tempo todo.

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Algumas pessoas dizem que estão registrando por escrito a experiência de viver uma pandemia. Fazem muito bem. Esquecemos muito, principalmente os pequenos fatos do dia a dia e boa parte dos sentimentos que experimentamos. Um dia, tudo isso parecerá fantástico como um pesadelo sem pé nem cabeça. Inacreditável.

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Do que você mais sente falta? Qual a mudança de hábito que mais o incomoda?

Já se fez estas perguntas? Respondê-las não é difícil.

“Sinto falta das festas de família.” “Sinto falta de conviver com meus filhos.” “Sinto falta de sair em viagem para qualquer lugar.” “Não sinto falta de nada porque tudo de que preciso está aqui comigo.”

Pronto! Aí está o retrato da nossa alma, de quem somos e do que necessitamos.

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