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Arte: Felipe Lima
Arte: Felipe Lima| Foto:

A partir de um momento na vida não parece muito sensato comemorar o fim de um ano, mesmo de um ano ruim. É quando um a mais passa a ser um a menos. Antes desse ponto de virada, que não acontece para todos na mesma idade, tudo era acréscimo, soma, nunca subtração. Um ano mais experiente, um ano mais adulto. Isso não é ruim. Só que, quando o sujeito está mais pra lá do que pra cá – vocês sabem do que estou falando –, comemorar o passar do tempo é um contrassenso. Então 2018 foi um ano pesado, mas celebrar que ele acabou… aí é demais. Essas referências temporais, como o calendário e o relógio, criadas para enquadrar nossas vidas, são tão sinceras em sua crueza quanto o espelho. O que eles dizem está dito. Ainda que lá dentro você se sinta como um garotinho pimpão louco para aprontar mais uma.

***

Havia uma eletricidade desconfortável entre as pessoas em 2018, aquele tipo de energia que resulta da fricção de dois corpos, um contra o outro. Dá medo de encostar o dedo e levar choque. Dito isso, quero contar que me surpreendi com a solidariedade de estranhos em dadas situações. Duas vezes ao longo do ano, meu adorado Pretinho, o vira-lata que neste momento me fita com seus olhos de jabuticaba, me deu um susto. Vou contar só a mais recente aventura. Dia de Natal, fim de tarde, vamos meu filho e eu levá-lo para passear. Mal atravessamos o portão, o maroto consegue escapar. Diante de nossos olhos arregalados, se pôs a correr como um fogo de artifício. Suas patas pareciam nem encostar no asfalto, de tão rápido que ia. Ziguezagueou pelo meio da rua, invadiu a garagem de um vizinho, e, marotamente, olhou pra trás para conferir se o seguíamos. Sim, íamos atrás dele, a coleira vazia e o coração na mão. Tive medo de atropelamento, mas os poucos motoristas que passaram entenderam a situação e diminuíram a velocidade. Houve quem desse sinal de luz e quem até parasse. Pretinho descobrira seu lado guepardo e nada podia detê-lo. Disparou por uma rua lateral fazendo apenas uma ou outra parada para cheirar um poste ou algo que só ele notava no gramado. E nós atrás. Fiquei brava, mas admito: Pretinho correndo é um espetáculo que merece ser visto. Nasceu pra isso. Meu instinto protetor faz o que pode para confiná-lo entre paredes seguras e o bicho se mostra em toda sua grandeza ao desafiar o trânsito.

Mas eu falava em solidariedade. Tive mostras dela na rua lateral onde Pretinho exibia sua habilidade nos 500 metros com barreiras e eu exibia a língua correndo atrás dele. Um motorista parou seu carrão de luxo ao nosso lado e, falando como um profissional, perguntou: “Vocês vão conseguir? Ou querem que eu vá atrás dele?” Ele parecia seguro de que, em suas mãos, o problema estava resolvido. Agradecemos a gentileza, mas o liberamos. Lá na frente, Pretinho quase desaparecia do nosso campo de visão quando passou por um carrinho estacionado em frente a um condomínio de alto padrão. Pretinho, sempre muito sociável, notou a motorista que olhava pela janela aberta e foi lá cumprimentá-la. Depois voltou àquilo que faz de melhor, ou seja, fugir em desabalada carreira. A mulher saiu de dentro do Corcel: vestia um uniforme de faxineira, cabelos presos em um coque e pés descalços. Como a maioria dos seres humanos, tinha um celular na mão. Falava com alguém, mas só para repetir: “Agora vou ajudar umas pessoas a pegar um cachorro”. Começou a chamar Pretinho e a nos orientar sobre o que fazer. Correu com os pés no chão pelo asfalto. Dava-nos instruções (“não corram, não briguem com ele”). Ela me explicou que sabia tudo sobre cães fujões porque Marizoca, sua cadelinha, escapava com frequência, tendo a última fuga ocorrida no dia anterior. Ela ainda precisou explicar umas duas vezes para sua interlocutora que ia desligar porque estava ajudando alguém. Notei, então, o desaparecimento do celular, que, meu filho esclareceu mais tarde, foi guardado – segundo ele notou – dentro do decote. Pretinho chegou a se aproximar da nossa treinadora, que tentava nos adestrar nas artes de não ser dominado pelo cão. Mas ele notou minha aproximação e partiu para mais uma corridinha.

A moça de uniforme me explicou que tinha acabado de trabalhar no almoço de Natal dos patrões e estava aguardando a colega. Por que descalça? Diante de tanta gentileza, não era o caso de perguntar.

Agradeci o empenho com um abraço, com um feliz ano novo, e ela voltou para seu veículo –um Passat? – enquanto meu filho e eu mudávamos de estratégia. Forçamos Pretinho a ir na direção de casa e, depois de mais algumas aventuras, conseguimos colocar a coleira e levá-lo para dentro.

Por essas e outras, meu vira-lata é uma celebridade na vizinhança.

Já vi muita briga de vizinhos por causa de cachorros, algumas até bem feias. Também este ano testemunhei uma em que uma arma foi apontada para o homem que se negava a catar a “lembrancinha” que seu cão deixava na grama do vizinho. Mas também tenho tido incríveis mostras de solidariedade de quem me viu em apuros por causa de Pretinho (sempre ele!).

Então me despeço aqui de 2018, desejando a mim mesma, a vocês, a todos nós um ano em que haja menos momentos de armas apontadas para o “inimigo” e mais mostras dessa grandeza que é a solidariedade desinteressada.

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