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Arte: Felipe Lima
Arte: Felipe Lima| Foto:

Em duas ocasiões, vivi uma experiência rara. Em plena luz do dia, caminhei por uma grande cidade vazia. Não aquele vazio pós-catástrofe, em que se sente o ar pesado e percebe-se a tristeza escondida atrás de cada janela fechada. Era um vazio alegre, excitado, como se todos estivessem trancados dentro de casa esperando o momento de sair para a rua e brincar o carnaval.

Foi em 1994. A seleção brasileira jogava contra a Suécia e eu circulava pelas ruas de São Paulo. Poucos dias depois, o jogo era contra a Holanda e eu estava, então, em Curitiba.

Não é uma experiência melancólica. Ao contrário: o caminhante é o senhor do espaço, vê algo que os outros não veem, observa o mundo de fora, ouve gritos, risadas, palavrões. Não vê, mas imagina. Seria ruim se eu preferisse assistir à partida. Não faço questão.

***

Um amigo carioca viveu a mesma experiência, mas com um final muito mais interessante. Sem vontade de acompanhar uma partida da Copa de 2002, deixou o escritório onde se agrupavam em torno da tevê os poucos colegas que não tinham ido para casa. Em uma rua de Ipanema, procurou um lugar para tomar um cafezinho. Encontrou uma cafeteria de balcão lustroso e lustres caros. Entrou. Não apareceu ninguém para atendê-lo. Da cozinha, vinham vozes, gritos, aplausos. Esperou, esperou. Desistiu.

Aquilo o deixou de mau humor.

Parou em frente à vitrine de uma livraria, uma daquelas livrarias bonitas que ainda existem nas ruas do Rio de Janeiro. Entrou. Folheava os livros quando se deu conta de que estava sozinho na loja. Pôs-se a conferir o local. Havia um funcionário no caixa e… olhando bem, descobriu uma cliente, uma mulher. Ao ser notada, ela se dirigiu a ele, como se só estivesse esperando a deixa. “Não adianta procurar um vendedor. Eles sumiram.”

Os dois trocaram impressões. Que diferente é a cidade vazia! Não consigo nem tomar um café! Não consigo que alguém me atenda em uma loja! – e as duas almas perdidas tiveram a ideia de irem juntas ver Ipanema deserta.

Caminharam, caminharam…

Quando os fogos de artifício espocaram e os cariocas começaram a sair para a rua, o casal recém-formado se pôs a evitar os invasores. As pessoas iam em direção à praia e eles iam na direção contrária. Sentiram-se cúmplices e íntimos naquela fuga ranzinza e teimosa. Apaixonaram-se e foram felizes até a Copa de 2010.

***

Estranhamente, o país do futebol produz poucos filmes ou literatura em que este esporte aparece com a grandeza que merece. O que me vêm à cabeça são alguns contos de Aldyr Garcia Schlee. Nada a ver com estádios gigantes, ídolos que descem dos morros ou cartolas maquiavélicos. É um mundo de delicadeza em que um menino descobre o futebol antes de descobrir que existe uma fronteira entre Brasil e Uruguai.

A vida de Aldyr Garcia Schlee daria um filme. Um filme uruguaio. Não sei se você viu filmes uruguaios recentemente… Se não viu, te digo que são bons. Como O Banheiro do Papa, baseado em um conto de Schlee.

A última notícia que li sobre ele, que anda pela casa dos 80 anos e vive perto de Pelotas, é que estava escrevendo algo sobre Borges. Borges com quem cruzou, quando criança, na sua Jaguarão natal enquanto o argentino explorava a fronteira. Como eu disse, a vida desse gaúcho daria um filme.

Nesta época de Copa do Mundo, ele é sempre lembrado por causa de um episódio pitoresco de sua biografia sobre o qual não gosta muito de falar. Sei disso porque o entrevistei uma vez e ele se queixou de ser lembrado por uma obra… menor. Acho justo. Se quiser saber mais, caríssimo leitor, sugiro que pesquise – o nome é Aldyr Garcia Schlee – e leia a obra.

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