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Paulo Briguet

Paulo Briguet

“O Paulo Briguet é o Rubem Braga da presente geração. Não percam nunca as crônicas dele.” (Olavo de Carvalho, filósofo e escritor)

Justiça

A prisão do juiz auxiliar

Então o juiz auxiliar se lembrou do dia em que cassara a palavra do réu, exatamente quando o réu tentava explicar como fora torturado. Lembrou-se do riso irônico da procuradora, que agora devia estar presa em uma cela muito parecida com esta (Foto: Imagem criada utilizando Open AI/Gazeta do Povo)

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“E a xícara abre uma fenda/ Que desce até o inferno.” (W. H. Auden)

A porta da cela bateu com força atrás do juiz auxiliar.

Ele se recostou na porta por alguns instantes e sentiu vontade de acender um cigarro – apesar de nunca ter fumado na vida, exceto uma vez, numa festa da faculdade de direito, muitos anos atrás, à época em que o Chefe fora seu professor.

O juiz auxiliar sentiu dor de dente – a mesma dor que o acompanhara de modo intermitente por todas as fases do julgamento. Passou os olhos pelo cubículo. Sobre a cama, à direita, havia dois cobertores que pareciam limpos. O colchão parecia confortável, embora fino. À sua esquerda, uma pia pingava marcando o tempo, tendo ao lado um vaso sem tampa que acabara de ser desinfectado. A janela ficava na altura dos olhos e dava para o pátio vazio e cinzento; na extrema-direita do retângulo gradeado, era possível ver uma nesga do céu.

Então o juiz auxiliar se lembrou do dia em que cassara a palavra do réu, exatamente quando o réu tentava explicar como fora torturado. Lembrou-se do riso irônico da procuradora, que agora devia estar presa em uma cela muito parecida com esta

Sentou-se na cama, tirou o casaco, sentiu sede. Havia uma garrafinha de plástico e uma xícara sobre o criado-mudo (era incorreto usar essa expressão, mas foi a única que lhe veio à mente para definir aquele movelzinho ao lado da cama). Ao encher a xícara, percebeu que uma finíssima fenda a dividia ao meio. Exatamente igual à xícara de seu antigo gabinete. Seria a mesma? O humor de seus carcereiros chegaria a tanto?

Contudo, não era a cela dantesca que o juiz auxiliar imaginara ter sido reservada para ele. Não havia marcas de sangue na parede e a lâmpada do teto, embora nua e presa por um fio empoeirado e sujo de cocô de moscas, iluminava o local a contento. Estava só, mas não numa solitária. Finalmente teria tempo de sobra para conversar consigo mesmo – e com esse Deus em que jamais pensara.

Então o juiz auxiliar se lembrou do dia em que cassara a palavra do réu, exatamente quando o réu tentava explicar como fora torturado. Lembrou-se do riso irônico da procuradora, que agora devia estar presa em uma cela muito parecida com esta. Pensou também no delegado, nos agentes, nos peritos, na pobre oficial de justiça que invadira uma UTI, na longa lista dos cumpridores de ordens. Todos agora estavam igualmente confinados, exceto o Chefe, que se encontrava em lugar incerto e não sabido.

Então o juiz auxiliar deitou-se na cama – não havia travesseiro – e contemplou o fio incandescente da lâmpada, e com esse fio traçou mentalmente o rosto do colega de gabinete que lhe falara sobre o Chefe:

— Meu caro, o Ministro nunca está errado. Você e eu podemos nos equivocar. O Ministro, não. O Ministro é a corporificação do ideal democrático na História. A História não conhece escrúpulos nem hesitações. Inerte e infalível, ela flui rumo a seus objetivos. Aquele que não tem fé absoluta no Ministro não é digno de trabalhar com ele.

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A dor de dente ia e voltava em ondas elétricas, como se houvesse um metrônomo lentíssimo dentro de seu maxilar. No silêncio da madrugada, o juiz auxiliar quase podia ouvir o som da própria dor, e com ele as palavras do velho réu:

— Uso vários medicamentos, Excelência. Após um período na penitenciária, apresentou-se um câncer de próstata agressivo e fui submetido a uma cirurgia. Depois da operação, tenho incontinência urinária, estou usando sonda e fralda geriátrica. Aguardo ordem médica para iniciar as sessões de quimioterapia. É um incômodo muito grande, sinto muitas dores, não tenho condições de me locomover sozinho.

Naquele dia, a procuradora também sorriu, e o juiz auxiliar, após tomar um gole de café na xícara fendida, declarou em tom burocrático:

— Declaro homologada a prisão e encerro a sessão.

Depois disso o juiz auxiliar fechou os olhos, dormiu e sonhou que estava numa festa da faculdade, e que o Ministro lhe oferecia um cigarro.

(PS: A crônica acima é inspirada livremente no romance “O Zero e o Infinito”, de Arthur Koestler. Interpretações não literárias estão desautorizadas.)

Conteúdo editado por: Jocelaine Santos

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