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Quando o professor viu aquela foto, a legião de demônios que habita o seu coração começou a uivar em uníssono. Ali estava representado tudo que ele mais odeia e repudia no mundo: uma família feliz, próspera e bonita. Dias atrás o professor havia curtido a foto da deputada trans radiante, linda e loira em seu empoderamento, exibindo a bolsa que tão arduamente havia conquistado com seu trabalho parlamentar. “Sem dúvida, esses burgueses estão tentando ofuscar o brilho da nossa companheira de lutas”, pensou o docente, a urdir sentimento de vingança.
Foi nesse momento que o mestre lembrou de seu mestre - o velho Marx. Aquele que jamais tivera uma família feliz, tendo perdido dois filhos para a fome e duas filhas para o suicídio. Marx escrevera no Manifesto, em 1848:
“Sobre que fundamento repousa a família atual, a família burguesa? No capital, no ganho individual. Em sua plenitude, a família só existe para a burguesia, mas encontra seu complemento na supressão forçada da família entre os proletários e a prostituição pública. A família dos burgueses desaparecerá, naturalmente, com o desaparecimento desse seu complemento, e ambos desaparecerão com a abolição do capital”.
Os pensamentos do professor se voltaram então para Joseph-Ignace Guillotin, o cirurgião francês que sonhou com uma pena de morte igualitária, humanizada, adequada aos ideais iluministas. Em 1792, o médico Antoine Louis e o construtor de pianos Tobias Schmidt construíram a máquina de matar idealizada por Guillotin, e ela imediatamente foi colocada em funcionamento pelos revolucionários franceses. Entre 1792 e 1799, a guilhotina separou 40 mil cabeças e corpos de inimigos da Revolução.
A guilhotina — refletiu o professor, imaginando a lâmina caindo implacável sobre as gargantas burguesas — não apenas separa o corpo e a cabeça, mas também elimina para sempre as ilusões cretinas sobre a existência de uma alma espiritual ou de um Deus soberano. Na cabeça do professor, cortar a cabeça dos reis e dos homens que acreditam em reis significa sepultar para sempre a superstição cristã.
Ali estava representado tudo que ele mais odeia e repudia no mundo: uma família feliz, próspera e bonita
Foi quando os dedos do professor digitaram a frase-sentença:
— SÓ GUILHOTINA!
Ele não fora o primeiro. Uma legião de comentaristas digitava freneticamente ameaças e impropérios contra a perfeita família burguesa. Por um instante, o professor respirou os antigos gritos da turba enfurecida na Praça da Revolução, quando os carrascos exibiam as cabeças cortadas dos inimigos e todos cantavam a Marselhesa.
E foi então que o professor se lembrou de outra família, cujo destino foi narrado por um revolucionário:
“Na noite de 15 para 16 de julho, por volta da meia-noite, Nicolau II, a czarina, a czarevicht Alexis, as quatro jovens grã-duquesas, o dr. Botkin, a governanta e o preceptor do ex-herdeiro do trono, dez pessoas ao todo, foram chamadas a se reunir em um cômodo do andar térreo. Esperavam que se tratasse de uma nova transferência. Enfileiraram-se diante de homens armados, um dos quais leu para eles, em nome do soviete regional, a sentença de morte que nem tiveram tempo suficiente para compreender. ‘Então, não vamos ser transferidos?’, disse Nicolau II, surpreso. Não teve tempo para se recuperar da surpresa. Em poucos instantes, os Romanov não passavam de um monte de cadáveres tombados contra uma parede arrebentada de balas. Um caminhão transportou os despojos, envoltos em cobertores, para uma mina abandonada, a oito verstas (cerca de nove quilômetros) da cidade. Lá, suas roupas foram cuidadosamente revistadas; as das grã-duquesas continham grande número de brilhantes; os cadáveres foram queimados e as cinzas, enterradas em um pântano próximo dali”.
Guilhotinar, fuzilar, exterminar, queimar, erradicar da face da Terra todos os inimigos da Revolução — esse é o sonho do professor, compartilhado pelos seus companheiros que estão no poder.




