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Paulo Briguet

Paulo Briguet

“O Paulo Briguet é o Rubem Braga da presente geração. Não percam nunca as crônicas dele.” (Olavo de Carvalho, filósofo e escritor)

Morte do tirano

Os últimos momentos do Imperador Calvo

O tirano caiu sem glória: censurou livros, prendeu médicos, silenciou o povo — e morreu ouvindo o sussurro mudo de suas vítimas. (Foto: Imagem criada utilizando OpenAI/Gazeta do Povo)

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Xerxes, o Imperador Calvo, morria. Quando os seguranças abriram a porta da sala, viram uma cena terrível: o monarca estava caído no tapete persa, de pijama e camiseta, com os olhos entreabertos e a careca, a famosa careca, reluzente sob a luz do abajur. Seus lábios tentavam formar palavras, mas só emitiam sussurros e grunhidos. A mão esquerda espasmódica tentava sinalizar algo para ninguém. 

Horas atrás, havia sofrido o ataque fatal — um surdo e malicioso ataque vindo de suas próprias entranhas — mas não conseguira pedir socorro. O poderoso magistrado, que decidira sobre a vida e a morte de tantos, não teve forças para chamar ajuda médica a tempo. Até porque os melhores médicos do país estavam presos — por ordem sua.

Os seguranças carregaram-no até o sofá da sala, próximo à estante de livros que ele próprio havia pessoalmente censurado. Xerxes olhava para aquelas lombadas e via os nomes de seus inimigos ali escritos — os inimigos que ele perseguira, prendera e eliminara.

Só uma hora depois chegaram os médicos — não os melhores médicos, mas aqueles que haviam sido suficientemente mesquinhos e covardes para jamais questionar o tirano. 

Com as mãos trêmulas e as testas porejadas de suor, esses medíocres doutores examinaram o paciente e, embora não pudessem dizê-lo em voz alta — ai de quem o fizesse! —, concluíram que não havia mais esperança. 

Desenganar um ditador talvez seja o mais perigoso dos atos médicos. E, no entanto, essa era a verdade, a incensurável e incancelável verdade. 

Pela mente do Imperador Calvo desfilavam agora os vultos de suas vítimas. Era uma procissão silenciosa e lenta, em que cada figura levava nas mãos uma vela acesa.

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Os presos, os torturados, os chantageados, os exilados, os censurados, os doentes, os extorquidos, os corrompidos, os falidos, os empobrecidos e os aterrorizados — todos eles se despediam mudamente do algoz

Uma senhora de cadeira de rodas ergueu os olhos por sobre os óculos de lentes grossas e disse:

— Eis aí um jeito irônico de morrer. Com uma palavra, destruía milhares de vidas. Agora não pode salvar a sua.

A procissão continuou, no ritmo de um adágio. De repente, Xerxes viu um rosto familiar e muito parecido com o seu.

— Sendo mortal, você pensou em sua insânia que poderia enfrentar todos os deuses! Em sua arrogância, tentou enfrentar a maior potência de sua época. Quem poderá negar que uma doença muito grave lhe dominou a mente, meu filho? Foi tão feroz a luta a ponto de levar um país como nosso à extinção total?

Diante do fantasma do pai, Xerxes tentou dizer alguma coisa, mas agora ele era o censor involuntário de si mesmo. Limitou-se, portanto, a pensar sem voz:

— Mereço tudo, por ter sido o flagelo de minha pátria!

Notando estar perante um decreto que não poderia revogar, Xerxes lançou um último olhar aos médicos e aos seguranças, um olhar de cheio de ódio e desespero. Aspirou ar, deteve-se em meio do suspiro, inteiriçou-se e morreu.

(PS: Esta crônica é inspirada em “Os Persas”, de Ésquilo, “Stálin — Triunfo e Tragédia”, de Dmitri Volkogonov, e “A Morte de Ivan Ilitch”, de Lev Tolstói. Interpretações não literárias estão desautorizadas.)

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