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“No anfiteatro de montanhas / Os profetas do Aleijadinho / Monumentalizam a paisagem / As cúpulas brancas dos Passos / E os cocares revirados das palmeiras / São degraus da arte de meu país / Onde ninguém mais subiu / Bíblia de pedra-sabão / Banhada no ouro das minas.” (Oswald de Andrade, Ocaso)
A ideia da vida espiritual como um processo ascensional não é um privilégio do cristianismo. Desde as mitologias arcaicas — por exemplo, da Mesopotâmia e do Egito —, passando pelos gregos (a Alegoria da Caverna é um exemplo paradigmático) e os nórdicos, a subida é sempre um sinal de divinização, de melhoria, de redenção.
A mais de mil metros de altitude, da porta de um modesto, mas bem cuidado restaurante de comida mineira em fogão à lenha, é possível vislumbrar o conjunto arquitetônico do Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, na mítica Congonhas do Campo (apenas Congonhas desde 1948), que abriga a obra-prima de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho. Formado por seis capelas, que sobem ao topo do Monte Maranhão, ziguezagueando entre palmeiras-imperiais, e que exibem — trancados, mas expostos à visão pelas aberturas nas enormes portas azuis como um mistério revelado — os teatrais Passos da Paixão, culminando no adro vaticinal dos Doze Profetas e na imponente igreja dedicada ao santo de devoção de seu idealizador, o complexo religioso e artístico de Congonhas é uma das obras mais impressionantes que vi na vida.
No ano de 1756, o minerador português Feliciano Mendes achava-se em Congonhas acometido de uma grave doença que o fez rogar a Deus por sua cura. Segundo a professora Myriam de Andrade Ribeiro de Oliveira, em seu O Aleijadinho e o Santuário de Congonhas: “A decisão de Feliciano de dedicar-se inteiramente ao serviço do Bom Jesus de Matosinhos e à construção de um santuário em sua homenagem no alto do monte Maranhão resultou do cumprimento de uma promessa, por ver-se milagrosamente curado de grave enfermidade contraída no trabalho da mineração.” Mendes erigiu uma cruz, no alto do Monte Maranhão, ao Bom Jesus de Matosinhos — muito venerado em Portugal —, doou todo o seu dinheiro para a construção da igreja e passou a viver, como ermitão, no local. A prof.ª Myriam continua — agora em Aleijadinho: Passos e Profetas:
“A história ʻoficialʼ do Santuário do Senhor Bom Jesus de Matosinhos do Arraial das Congonhas do Campo inicia-se com a aprovação eclesiástica, concedida a 21 de junho do mesmo ano, pelo 1º Bispo de Mariana, D. Frei Manuel da Cruz, para a ereção de uma ermida no Monte Maranhão, que deveria funcionar provisoriamente até a construção do edifício definitivo, com o fruto das esmolas que o primeiro ermitão e seus sucessores pudessem recolher pelos caminhos de Minas.”
Após a morte de Mendes, em 1756, que era “oficial de pedreiro” e foi o primeiro supervisor da obra (e talvez o seu arquiteto), a construção da igreja seguiu supervisionada por uma série de sucessores até sua conclusão, incluindo toda a parte externa e o adro, em 1794 — com exceção das capelas, que foram terminadas só em 1872. A clara inspiração para a obra foi o Santuário de Bom Jesus do Monte (ou Bom Jesus de Braga), em Portugal, seguindo a tradição dos Sacros Montes europeus.
Aleijadinho esculpiu as 66 imagens das cenas da Paixão, em madeira de cedro e tamanho próximo ao natural, entre 1796 e 1799. Elas compõem as seguintes cenas: Ceia, Horto das Oliveiras, Prisão, Flagelação, Coroação de Espinhos, Cruz às Costas e Crucificação. A fisionomia das imagens é, muito provavelmente, inspirada na arte italiana da época, composta de figuras de “tipo longilíneo, de nariz fino, barba em ponta, em dois rolos, cujas volutas unem-se no queixo, o que é feito pelos pintores italianos da mesma época”, como afirma Germain Bazin em seu clássico O Aleijadinho. Inicialmente, o projeto seria composto de sete capelas, diminuídas para seis e, com isso, uma delas tendo de abrigar duas cenas: a da Flagelação e a da Coroação de Espinhos. Em cada uma dessas capelas há uma inscrição bíblica, em latim, que corresponde à cena.
Sobre a pintura – ou policromia – “dois nomes importantes figuram no contrato para a ‘pintura e encarnação’ dos Passos, assinado a 8 de dezembro de 1799: o pintor Manoel da Costa Ataíde, ao qual foram atribuídas as imagens dos grupos da Ceia, Flagelação e Crucificação, e Francisco Xavier Carneiro, incumbido dos grupos restantes. Entretanto, só o primeiro participou efetivamente da policromia dos Passos, iniciada em 1808 e concluída tardiamente, já na segunda metade do século XIX”, relata a profª Myriam de Andrade, em O Aleijadinho e o Santuário de Congonhas.
As cenas são teatrais, simulam movimento e contêm expressões faciais marcantes; os inimigos de Cristo são todos caricatos, patéticos. Entretanto, há algo profundamente marcante: a impassibilidade do Cristo diante do sofrimento. Diz Bazin:
“A impressão que predomina nesse conjunto de estátuas de Cristo é a inocência da Santa Vítima que, no sofrimento, permanece estranha ao desencadeamento do mal que a acabrunha. Ignorando tão profunda maldade, o Puro Mártir não pode compreender esse pecado de que se revestiu e pelo qual morre. Todo esse sofrimento é vivido em ato, não ao nível dos sentidos, mas no fundo da alma; nem por um instante o Cristo abandona-se à fraqueza humana; nem por um instante deixa de rezar. A dor sofrida na carne, ele a oferece em redenção dos pecados dos homens. Ele é, ao mesmo tempo, padre que celebra o santo sacrifício, vítima oferecida em holocausto – isto é, até a consumação – e Deus mesmo. Ele é o Cristo! Em momento algum, no entanto, o sofrimento lhe altera a beleza imortal.”
A cada olhadela por entre a abertura nas grandes portas das capelas, uma cena se revela, imponente e cheia de vida, completada por um cenário pintado por Mestre Ataíde nas paredes ao fundo. Os detalhes são impressionantes: as dobras das roupas, os músculos retesados dos soldados, os olhares penetrantes. É impossível ficar indiferente diante de tamanha beleza e espiritualidade transmitidas por essas obras. E, quando chegamos à última capela, vemos o Cristo Crucificado, no chão, de rosto para cima, com uma levíssima expressão de angústia – como uma antecipação do “Por que me abandonaste?” dito por Jesus na cruz já erigida. Ao seu lado, Maria Madalena, de joelhos, roga aos céus.
Ao terminarmos a via crucis, seguimos monte acima, já vislumbrando a magnificência dos profetas de pedra-sabão, esculpidos por Aleijadinho entre 1800 e 1805, no adro da igreja de Bom Jesus de Matosinhos. Somos recebidos, no primeiro plano, por Jeremias e Isaías, ladeados, no ponto mais alto, por Abdias e Habacuque, que apontam para o céu. Acima, temos Amós e Naum, Baruque e Ezequiel; e, mais ao fundo, Jonas, Daniel, Oséias e Joel. Bazin, mais uma vez, poeticamente, nos descreve o Balé dos Profetas:
“Desta vez é perante o céu que os profetas lançam suas maldições. O infinito encarneirado das montanhas de Minas subitamente se interrompe para ceder lugar a um vasto espaço entre a Serra de Ouro Branco, a leste, e a Serra de Santo Antônio, ao norte e a oeste. Lá em cima, no rebordo desse circo, gesticulam esses acrobatas que, com seus gestos loucos, parecem ter varrido os montes, desobstruindo a amplidão. Nos três planos do adro, os profetas ordenam seus gestos, simetricamente, em relação ao eixo da composição, formando, assim, um balé.”
Os profetas estão vestidos “à moda turca”, que, segundo a profª Myriam Andrade, era “comum na arte europeia dos séculos XVI ao XVIII, tendo em vista a influência cultural gerada pela presença dos turcos na Europa desde fins do século XV, quando se instalaram em Constantinopla, atual Istambul”. As formas irregulares sugerem, alguns dizem, um trabalho conjunto do Aleijadinho com os ajudantes de seu “ateliê”; mas, como mencionei em artigo recente aqui, nesta Gazeta do Povo, o símbolo se sobrepõe à autoria.
Não sabemos ao certo quem escolheu, especificamente, esses profetas e deixou de fora outros, mas os escolhidos seguem, mais ou menos, a sequência bíblica do Antigo Testamento. Cada um deles tem nas mãos um pergaminho com uma citação de seu respectivo livro; Daniel tem, aos seus pés, um leão, e Jonas, um grande peixe. A riqueza de detalhes é extraordinária: cada dobra na túnica, cada expressão facial, cada movimento – tudo isso esculpido em pedra por um homem debilitado e já avançado em idade. Aleijadinho tinha mais de 70 anos à época.
A figura dos profetas de Aleijadinho impressionou a muitos. Os modernistas, sobretudo, responsáveis pela retomada do valor de Antônio Francisco Lisboa, escreveram poemas (como o que está em epígrafe, de Oswald de Andrade), ensaios e crônicas sobre Congonhas. O mineiro Carlos Drummond de Andrade descreveu esse cenário divino em verso e prosa. Numa belíssima crônica, “Colóquio das Estátuas”, em sua obra Passeios na Ilha, o itabirano nos encanta:
“Sobre o vale profundo, onde flui o rio Maranhão, sobre os campos de congonha, sobre a fita da estrada de ferro, na paz das minas exauridas, conversam entre si os profetas. Aí onde os pôs a mão genial de Antônio Francisco, em perfeita comunhão com o adro, o santuário, a paisagem toda – magníficos, terríveis, graves e eternos –, eles falam de coisas do mundo que, na linguagem das Escrituras, se vão transformando em símbolo. As barbas barrocas de uns, panejadas pelo vento que corre as gerais, lembram serpentes vingativas, a se enovelarem; no rosto glabro de outros, a sabedoria ganha nova majestade; e os doze, em assembleia meditativa, robustos, não obstante a fragilidade do saponito em que se moldaram e que os devotos vão cobiçosamente lanhando – os doze consideram o estado dos negócios do homem, a turbação crescente das almas, e reprovam, e advertem […] São mineiros esses profetas. Mineiros na patética e concentrada postura em que os armou o mineiro Aleijadinho; mineiros na visão ampla da terra, seus males, guerras, crimes, tristezas e anelos; mineiros no julgar friamente e no curar com bálsamo; no pessimismo; na iluminação íntima; sim, mineiros de há 150 anos e de agora, taciturnos, crepusculares, messiânicos e melancólicos.”
Congonhas é poesia e espiritualidade puras. É um sinal de Deus que outro profeta deformado, Antônio Francisco Lisboa, o genial Aleijadinho, deixou para os homens. Quem tem olhos para ver, que veja.




