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Paulo Cruz

Paulo Cruz

A liberdade é um direito radical. Coluna semanal

Arte no Brasil

E se o Aleijadinho fosse brasileiro?

(Foto: Pedro Vilela/Agência Brasil)

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“Toda a sua obra de arquiteto e escultor é de uma saúde, de uma robustez, de uma dignidade a que não atingiu nenhum outro artista plástico entre nós. As suas igrejas, que apresentam uma solução tão sábia de adaptação do barroco ao ambiente do século XVIII mineiro, não criam aquela atmosfera de misticismo quase doentio que há, por exemplo, em S. Francisco de Assis, da Bahia, ou na Misericórdia, de Olinda: nas claras naves de Antônio Francisco dir-se-ia que a crença não se socorre senão da razão; não há nelas nenhum apelo ao êxtase, ao mistério, ao alumbramento.” (Manuel Bandeira, Guia de Ouro Preto)

Meu apreço e meus estudos (ainda incipientes) sobre arte desembocaram cedo na beleza da estatuária da igreja de Senhor Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas, mítico município das Minas Gerais – meu El Dorado particular. Em aulas e palestras dadas por mim, sempre que o assunto é a Beleza, o Belo, as obras de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, eram e são usadas como exemplo daquilo que de mais sublime se produziu na história da humanidade. Igualmente para as pinturas de Manuel da Costa Ataíde, o Mestre Ataíde, sobretudo o extasiante teto da igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto.

O único problema era: eu não conhecia nada disso pessoalmente. Até a semana passada, meu contato com essas obras era somente através de fotos e pesquisas, o que, se não maculava minha percepção da beleza expressa nos Doze Profetas ou nos Passos da Paixão de Cristo, certamente limitava minha percepção e minha propriedade para falar do assunto. “Eu te conhecia só de ouvir, mas agora os meus olhos te veem”...

No último dia 1º de maio, desembarquei em Ouro Preto para passar cinco dos dias mais surpreendentes da minha vida. Da aconchegante pousada, que fica literalmente atrás da igreja de São Francisco de Assis – o que me permitiu mais de uma visita àquelas celestiais obras de arte –, parti para longas caminhadas por aquelas ladeiras, para visitas contemplativas àquele universo arquitetônico, aos museus e a algumas daquelas igrejas, repletas de encanto e história. Vale mencionar a rápida passada pela graciosa Tiradentes, que eu já conhecia e que antecipou a experiência dos outros dias, que foram poucos, mas inesquecíveis.

Ao olhar aquelas obras, aqueles detalhes, aquela beleza singular, sempre me vinha à mente a descrição de seu autor: “pardo escuro, tinha a voz forte, a fala arrebatada e o gênio agastado; a estatura era baixa, o corpo cheio e mal configurado, o rosto e a cabeça redondos, e esta volumosa; o cabelo preto e anelado, o da barba cerrado e basto; a testa larga, o nariz retangular e algum tanto pontiagudo, os beiços grossos, as orelhas grandes e o pescoço curto” – segundo a descrição de Rodrigo José Ferreira Bretas, seu primeiro biógrafo, que publicou sua obra em 1858, ou seja, 44 anos após a morte do biografado. Uma biografia à moda antiga, que trata o personagem como um modelo de superação e virtude – e não é exatamente isso que, desde sempre, justifica narrar a vida de alguém?

No entanto, como vivemos num tempo em que se contesta tudo, o relato de Bretas é, por muitos, dado como fantasioso, como a tentativa de construção de um herói nacional quase mítico, como um “Quasímodo colonial”, nas palavras do prof. João Adolfo Hansen, que prefaciou o livro-bomba de Guiomar de Grammont, O Aleijadinho e o Aeroplano, que passa com seu trator crítico por cima de tudo o que se conhecia sobre o gênio leproso até então. Grammont diz que sua obra é “a desconstrução de não apenas uma de várias ilusões biográficas que se sucederam na história da arte brasileira”, e “o esforço de desnudar essa utopia [biográfica], de desconstruir – a contrapelo – uma história tornada verdade pela repetição e por sua adequação aos diversos interesses de momentos específicos da historiografia brasileira”.

A mim parece estranha essa tentativa de demitologização de um personagem histórico que tem uma importância na formação da imaginação coletiva. Os mitos, como narrativas que apelam à imaginação enquanto formadoras de sentidos, não devem ser confrontados com a verdade científica, uma vez que tratam de ordens diferentes. C.S. Lewis afirma, em “Mito que se tornou realidade”, que “na apreciação de um grande mito, chegamos o mais perto possível de vivenciar de modo concreto aquilo que só poderia ser entendido como uma abstração”, e que “é somente ao receber o mito como uma história que experimentamos o princípio de forma concreta”. E arremata:

“O que flui para nós a partir do mito não é a verdade, mas a realidade (a verdade é sempre sobre alguma coisa, mas a realidade é aquilo sobre o que a verdade é), e, portanto, cada mito se torna o pai de inúmeras verdades no nível da abstração. Mito é a montanha de onde procedem todos os diferentes rios que se tornam verdades aqui embaixo no vale […]. Ou, se preferir, mito é o istmo que liga o mundo peninsular do pensamento ao vasto continente a que realmente pertencemos. Ele não é, como a verdade, abstrato; nem está, como a experiência direta, ligado ao específico.”

Nesse sentido, a história de Antônio Francisco Lisboa, que, segundo Bretas, “nasceu a 29 de agosto de 1730 no arrabalde desta cidade que se denomina – o Bom Sucesso, pertencente à freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Antônio Dias. Filho natural de Manuel Francisco da Costa Lisboa, distinto arquiteto português, teve por mãe uma africana, ou crioula, de nome Isabel, e escrava do mesmo Lisboa, que o libertou por ocasião de fazê-lo batizar”, é uma história-modelo desse país mestiço e peculiar, assentado sobre os ombros de seus Rômulos e Remos.

Grammont diz que sua obra visa a “desmontar um herói como uma criança desmonta um brinquedo: sem o objetivo de dar-lhe alguma nova unidade. O esforço é de desconstrução dessa unidade; desconstrução, não por acaso, pressuposta nos vários Aleijadinhos que compõem os títulos dos capítulos deste trabalho”. Por quê? Porque, para ela:

“O mito que se coloca sob os inúmeros mitos que compõem esse personagem é o do herói civilizador, capaz de transformar as matérias agrestes da natureza em formas da cultura. Por que não, como Da Vinci, engenhocas que voam pelo céu? Espécie de versão colonial da inquietação do padre Gusmão, sempre entre as nuvens e o chão árduo. É o deus ferreiro, monstruoso Hefaístos, que, no escuro de sua forja, produz maravilhas. Profetiza uma unidade perdida e reencontrada em sua própria figura. Para personagens míticos não há escolha: são predeterminados por aquilo que se deseja fazer deles. Um homem não há sozinho. Um homem é um jogo de relações, um jogo que ele também joga. Um mito, não.”

Entretanto, como um homem religioso que sou, estou com Lewis. Para ele, “os mitos já foram aceitos como verdades literais, como verdades alegóricas (pelos estoicos), como confusões da história (por Evêmero), como mentiras eclesiásticas (pelos filósofos do Iluminismo), como rituais agrícolas imitativos reputados por proposições (na época de Frazer). Se partirmos de uma filosofia naturalista, é provável que o resultado seja algo semelhante à opinião de Evêmero ou Frazer. No entanto, eu não sou naturalista. Creio que, na abundância de mitologia que nos foi transmitida, há uma grande mistura de fontes – histórias reais, alegorias, rituais, o simples prazer humano de contar histórias, entre outras”. E isso faz parte de nossa formação como humanos confusos diante daquilo que não compreendemos por completo. E, em “O dogma e o universo”, ele assevera:

“Quando nos espantamos diante da grandiosidade do universo, na verdade nos espantamos (quase literalmente) com nossa própria sombra. Afinal, esses anos-luz e bilhões de séculos são meramente aritméticos até que a sombra do homem, o poeta, o criador de mitos, caia sobre eles. Não digo que estamos errados em tremer à vista desta sombra; trata-se da sombra de uma imagem divina. Porém, se a vastidão da matéria ameaçar subjugar nosso espírito, devemos lembrar que é a matéria espiritualizada que faz esta ameaça. A grande nebulosa de Andrômeda deve ao homem insignificante, em certo sentido, sua grandeza. E isso me leva a dizer, uma vez mais, que somos difíceis de agradar. Se o mundo em que nos encontramos não fosse vasto e estranho o suficiente para causar terror em Pascal, que pobres criaturas seríamos! Sendo o que somos — anfíbios racionais, mas também animados, que passam do mundo sensorial ao espiritual por meio de mitos e metáforas —, eu não vejo como poderíamos ter chegado ao conhecimento da grandeza de Deus sem o indício oferecido pela grandiosidade do universo material. Mais uma vez, que tipo de universo nós exigimos? Se fosse pequeno o suficiente para ser aconchegante, não seria grande o suficiente para ser sublime. Agora, se ele é grande o suficiente para que estiquemos nossos membros espirituais, então deve ser grande o suficiente para nos deixar perplexos.”

Nesse sentido, demitologizar é diminuir, e diminuir é perder. E eu, uma vez tendo estado frente a frente com as obras desse grande homem, do Quasímodo Colonial, sua criatividade e engenhosidade continuam me parecendo extraordinárias, e sua vida, cheia de virtudes nas quais posso orientar a minha própria vida. Seus desafios e superações, míticos ou não, são só uma maneira de evidenciar aquilo que é grandioso e perene em suas obras; e suas obras são parte do que somos.

Que nosso país, já tão carente de modelos exemplares, não perca de vista o que há de maravilhoso em Aleijadinho, Mestre Ataíde e outros escultores da espiritualidade brasileira — aquela que nos fez resistir e existir. Falarei mais sobre isso em outra oportunidade.

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