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Camille Paglia no Fronteiras do Pensamento, em 2015.
Camille Paglia no Fronteiras do Pensamento, em 2015.| Foto: Fronteiras do Pensamento/Wikimedia Commons

“Que raízes são essas que se arraigam, que ramos se esgalham
Nessa imundície pedregosa? Filho do homem
Não podes dizer, ou sequer estimas, porque apenas conheces
Um feixe de imagens fraturadas, batidas pelo sol,
E as árvores mortas já não mais te abrigam, nem te consola o canto dos grilos,
E nenhum rumor de água a latejar na pedra seca. Apenas
Uma sombra medra sob esta rocha escarlate.”

(T.S. Eliot, Terra Desolada)

No último fim de semana estive, com meu irmão, minha cunhada e minha tia, na casa de minha mãe para saborear sua deliciosa feijoada – que beira à perfeição! –, e conversávamos sobre a imensa dificuldade que a geração nascida antes dos anos 1950 (de minha mãe e minha tia) tem de compreender a Geração Z (de meu filho). Trata-se de uma incompreensão absoluta, de um abismo de tal modo intransponível que parecem seres oriundos de planetas diferentes.

Por exemplo, não entra na cabeça de minha mãe, de jeito nenhum, que uma geração de nativos digitais, bombardeada de informações 24 horas por dia, cercada de facilidades e com um sem-número de cursos e profissões para escolher, simplesmente não escolhe nada; eles são, em sua grande maioria, apáticos, indecisos e – não raro – desmesurada e irremediavelmente infelizes. Se a geração do pós-guerra foi a dos rebeldes sem causa, a geração atual é dos deprimidos sem causa.

Óbvio que muitos problemas dessa geração são reais; é a geração dos pais separados, do vício nas redes sociais, do prazer efêmero, da atenção de 15 segundos, da iliteracia, da infinidade de gêneros. E, sobre esse último tema, lembrei-me da entrevista da filósofa e crítica cultural Camille Paglia no programa Roda Viva, em 2015.

A Geração Z é a geração dos pais separados, do vício nas redes sociais, do prazer efêmero, da atenção de 15 segundos, da iliteracia, da infinidade de gêneros

Paglia é uma figura polêmica, de opiniões fortes e controversas e capacidade intelectual invejável, cujas teses confrontam praticamente todos os consensos de nossa era. Com isso, mesmo sendo feminista, homossexual, ateia e libertária que defende a pornografia, consegue agradar conservadores e desagradar progressistas. Em sua entrevista, que recomendo vivamente, Paglia responde com maestria a todos os questionamentos a respeito de suas ideias, e não foi diferente quando o assunto é gênero. O jornalista Paulo Werneck lhe pergunta: “O século 21 está vivendo o surgimento da cultura transgênero e de mil gêneros; hoje, no Facebook de alguns países, existem mais de cem tipos de gêneros a que você pode aderir; universidades americanas estão dando cotas para novos gêneros que vão sendo criados. Como você enxerga essa cultura transgênero que está surgindo nesse momento e que modifica um pouco esse quadro estável, homem e mulher, do século 20 no qual você se criou?”

A resposta de Paglia é longa. Ela inicia dizendo ser uma pessoa, em certo sentido, identificada como transgênero, que sempre questionou os padrões de vestuário e que sempre teve uma postura transgressora em relação às normas sociais estabelecias. No entanto, diz ela:

“Ainda acredito que existam fundamentalmente dois sexos, que são determinados biologicamente. Há uma zona cinzenta no meio... Comecei a escrever sobre androginia, sobre a mistura dos limites entre homem e mulher, na faculdade; gostava muito do assunto e o encontrava em todo lugar, nas obras, de Shakespeare [...]. Quando cheguei à pós-graduação isso foi tema de minha tese de doutoramento, que teve como título Sexual Personae, eram as categorias de andróginos, que se tornou o título de minha tese. Fiz pesquisa na biblioteca, fui à faculdade de Medicina, pesquisei sobre biologia reprodutiva e aprendi sobre essa área cinzenta entre gêneros. Mas trata-se de um número muito pequeno de casos, um número diminuto de gêneros autênticos que são ambíguos.”

E completa essa primeira parte da resposta dizendo que há muita mentira e propaganda sobre essa multiplicidade de gêneros; que as cirurgias de resignação sexual não podem mudar o sexo de ninguém e não deveriam ser incentivadas nem mesmo na adolescência; e que tal intervenção, inclusive a aplicação de hormônios para retardar a puberdade, é uma espécie de abuso infantil.

Mas a parte mais interessante da resposta, e a que mais nos interessa aqui, é quando ela fala sobre declínio de civilizações. Ela diz – a resposta é longa, mas importante:

“Em meu estudo histórico em Personas Sexuais, sempre falo sobre as fases mais avançadas de cultura. Sempre fui atraída pelas fases mais avançadas ou decadentes da cultura. Oscar Wilde é um dos grandes expoentes do fim do século 19 e uma das minhas maiores influências na juventude. E descobri, em meus estudos, que a história é cíclica; em qualquer lugar do mundo você encontra um padrão, em períodos antigos, que, quando uma cultura entra em declínio, você tem um surgimento de fenômenos transgênero. Isso é sintoma de colapso de uma cultura. Então, em vez de as pessoas elogiarem o liberalismo [progressismo] humanitário que permite todas essas possibilidades de transgênero aparecerem ou serem encorajadas, eu ficaria preocupada com o modo como a cultura ocidental está se definindo para o mundo. Porque, na verdade, esse fenômeno está incentivando os irracionais e quase psicóticos opositores da cultura ocidental, na forma do Estado Islâmico e outros jihadistas. Nada define melhor o declínio da cultura ocidental para os jihadistas do que nossa tolerância aberta à homossexualidade e essa mania transgênero. Acho que, em qualquer visão de futuro, o futurismo da ficção científica do século 19 e começo do 20 normalmente projetou que homens e mulheres, no espaço distante, começarão a se adaptar em gênero. Você vê isso em Star Wars, o gênero começa a ser apagado, homens e mulheres trabalham lado a lado quase como em uma máquina – há algo de mecânico nisso –, fazendo desaparecer as diferenças de gênero... E, sim, cada vez mais o ʻmasculinoʼ está sendo visto como algo retrógrado, algo paleolítico, que pertence ao passado. No entanto, sigo avisando que, na possibilidade de um desastre de qualquer natureza – desastre político, guerra, fome –, mas também problemas climáticos muito severos [...] Se você estudar história, tudo isso é previsível. Como Roma caiu, o Ocidente cairá. E o que nos restará? Dependeremos dos homens de novo. Precisaremos de homens. As mulheres e crianças ficarão em casa, e os homens terão de sair e caçar animais selvagens com as mãos, cortar a carne e fazer o trabalho pesado. E, de repente, o masculino voltará.”

Toda essa discussão sobre sexualidade tem confundido – e deprimido – os adolescentes de nosso tempo

E ela segue, falando rapidamente e elencando mais uma série de argumentos sobre a relação entre o declínio civilizacional e as discussões sobre gênero que, atualmente, parecem tomar grande parte do tempo nas preocupações dos jovens – mesmo num país como o Brasil, um país com quase 50% da população sem saneamento básico. E Camille Paglia tem mesmo um ponto. Ainda que discordemos dela, não podemos ignorar que toda essa discussão sobre sexualidade tem confundido – e deprimido – os adolescentes de nosso tempo. Hoje mesmo, durante uma aula, enquanto discutia essa questão com alunos do ensino médio, uma aluna tentou elencar todas as letras da sigla LGBTQIA+ etc. e tal, e quase não conseguiu. O fato é que, não tendo mais um conjunto de referências sólidas para seguir, os jovens oscilam, à deriva, num oceano de possibilidades sem encontrar um porto seguro. E estão sofrendo.

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Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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