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Presidente Jair Bolsonaro, ao lado do pastor Silas Malafaia, discursa para apoiadores em Londres.| Foto: Reprodução Facebook Jair Bolsonaro.

“Esta é a terra morta
Esta é a terra dos cactos
Aqui as imagens de pedra
São criadas, aqui recebem
A súplica da mão de um homem morto
Sob o brilho de um astro em desaparição.

É assim
No reino outro da morte.”
(T.S. Eliot em Homens Ocos)

Um dos debates mais controversos da atualidade é sobre o politicamente correto. Já escrevi sobre o tema aqui, nesta Gazeta do Povo, de modo que não me alongarei nas definições. Basta repetir que:

“De acordo com o condecorado político e ex-ministro da Defesa neozelandês Dr. Wayne Mapp, citado por William: ʻO politicamente correto baseia-se na captura de instituições do Estado, com porta-vozes oficiais, poderes legislativos e, finalmente, sanções por violação. Sem essas características, as atitudes e crenças do politicamente correto seriam apenas outro ponto de vista da sociedade, podendo ser debatidas e discutidas da mesma maneira que qualquer outro conjunto de ideias. A correção política exige a captura de instituições do Estado por uma minoria, de modo que as instituições públicas que lidam com a discriminação tenham sido tomadas por pessoas que estão fora dos valores tradicionaisʼ.”

Até aqui, OK. Penso que devemos lutar contra essa captura da linguagem e das instituições para fins privados de poder. O politicamente correto é uma arma nas mãos das militâncias da esquerda pós-moderna com o intuito de desestabilizar, controlar e dominar a sociedade em nome de um humanismo fictício. Proibir palavras, censurar a livre circulação de ideias, cercear a ciência, perseguir dissidentes, tudo isso é abjeto e merece não só nosso mais veemente protesto, como também uma refutação adequada para que a barbárie – que interessa a esses grupos – não se estabeleça.

Bolsonaristas mostram que são, sim, implacáveis na postura de cruzados da guerra cultural em que se meteram. Mas não demonstram a mais fundamental das virtudes conservadoras, a prudência

Entretanto, na semana passada dois eventos, somados a outros tantos, me chamaram a atenção. Em resposta à absolutamente reprovável atitude de Luiz Inácio Lula da Silva, que num de seus discursos disse que os protestos bolsonaristas de 7 de setembro pareciam uma reunião da Ku Klux Klan, alguns apoiadores de Bolsonaro resolveram ironizar a comparação abjeta de Lula e se autodenominaram Cuzcuz Klan. Algo como se, ao chamarem Bolsonaro de genocida, seus apoiadores criassem um evento chamado Rolo Do Mor. Trata-se de uma ironia politicamente incorreta? Sim, mas, ao meu ver, é mais, pois não se trata de um ato isolado, fortuito, mas de um comportamento recorrente entre bolsonaristas – e do próprio; e outro exemplo, tenebroso, creio que me ajude a explicar melhor.

Uma menina de 11 anos está grávida pela segunda vez, vítima de abuso infantil e estupro. A primeira gravidez, ao que tudo indica causada por um primo, ocorreu aos 10 anos e foi levada até o final. A família pretende que ela também tenha o segundo bebê. Tudo muito trágico, horrível. No entanto, surpreendeu-me ver o músico Roger Moreira, da banda Ultraje a Rigor, apoiador contumaz de Bolsonaro, escrever, em seu Twitter, ao compartilhar a notícia: “Agora vê se para de meter! Ou pelo menos usa camisinha, porra!” Sim, caro leitor, isso mesmo que você leu. E, não contente em ter escrito isso – talvez sem ler a notícia –, Roger ainda respondeu tuítes de pessoas que o criticaram, se defendendo com argumentos do tipo “Se foi estupro, ninguém toma conta dessa criança? Se não foi, ninguém toma conta dessa criança?” Ou, ainda, dizendo que foi uma brincadeira.

E um exemplo complementar é o do ex-presidente da Fundação Palmares, recorrente em seu comportamento reacionário que beira à histeria, se apresentar como “negro de direita, antivitimista, inimigo do politicamente correto”.

Ainda que tais atitudes, que são uma tentativa de escapar ao cerceamento do politicamente correto, não sejam de fato graves, a meu ver cruzam a linha tênue da civilidade por sua inconsequência. Ao ironizarem tragédias (ignorando a temperança), tratarem opositores com violência, atacarem jornalistas – comportamento que sempre criticamos nos petistas – ou seguirem o candidato à reeleição em seu desrespeito às instituições milenares da monarquia britânica (algo absolutamente anticonservador), maculando o velório e o funeral da rainha Elizabeth II com entrevistas e comícios eivados de discurso golpista; ou, ainda, ao usarem os 200 anos da independência do Brasil – maculando o legado de conservadores como Antônio Pereira Rebouças, Nabuco de Araújo e José Bonifácio – para fazerem coro de “imbrochável” ao seu candidato de estimação, mostram que são, sim, implacáveis na postura de cruzados da guerra cultural em que se meteram. Mas não demonstram a mais fundamental das virtudes conservadoras, a prudência.

A luta contra o politicamente correto é uma luta por mais civilidade, não por menos; é uma luta por recuperar os valores reais da sociedade, não por solapar as instituições. É uma luta que se trava sobre o ombro de gigantes, amparada pelo respeito à ordem e às coisas permanentes. Trata-se de saber separar o exagero retórico do politicamente correto daquilo que realmente nos fere enquanto sociedade. Racismo, machismo, homofobia, abuso infantil etc. não são mimimi, são problemas reais que devem ser tratados por nós, conservadores, não com xingamentos ou menosprezo, mas de acordo com os princípios da reta razão.

Russell Kirk afirma, em seu célebre Enemies of the Permanent Things, que “a doença de degradação normativa corrói a ordem na pessoa e na sociedade”. E que “até que reconheçamos a natureza desta aflição, afundaremos cada vez mais na desordem da alma e na desordem do Estado. A recuperação das normas pode ser iniciada somente quando nós, modernos, compreendermos de que maneira nós caímos para longe das antigas verdades”. E completa: “Os preceitos morais e as convenções sociais que obedecemos representam os juízos ponderados e filtrados da experiência de muitas gerações de seres humanos prudentes e obedientes, os mais sagazes de nossa espécie” (grifo meu).

Agora, pergunto ao atento leitor: o que as atitudes de Roger Moreira, dos engraçadinhos da Cuscuz Clan ou dos violentos e histéricos apoiadores de Bolsonaro têm de ponderadas e sagazes? Eu mesmo respondo: nada. São só mais uma turba, mais uma massa, mais um grupo de pessoas tomadas pela paixão política. Essas pessoas não respeitam a ordem estabelecida, as instituições democráticas – ainda que sejam falhas – e nem as tradições seculares. São pessoas que detestam a cultura, o cultivo do espírito, a ordenação da alma. Estão tomadas por um ódio ideológico, reacionário, semeado em grupos de WhatsApp, em canais de YouTube de caráter duvidoso e alimentados por blogueiros chapa-branca.

A luta contra o politicamente correto é uma luta por mais civilidade, não por menos; é uma luta por recuperar os valores reais da sociedade, não por solapar as instituições

João Camilo de Oliveira Torres, em O Elogio do Conservadorismo, texto de 1962, mas atualíssimo, é categórico:

“Como vivemos numa época de fanatismo ideológico e de intolerância política, domina em todos os espíritos, ou pelo menos na maioria deles, a convicção de que há uma posição absolutamente verdadeira – a nossa, naturalmente –, sendo réus de Geena, moral e doutrinariamente responsáveis, os adversários. Assim, a clássica dicotomia entre conservadorismo e reformismo, entre conservadores e liberais, como no século passado [ele se refere ao século 19], entre conservadores e socialistas, hoje, em lugar de se apresentarem como duas posições lícitas e justas, defendendo aspectos parciais de uma verdade total, que nenhuma realiza completamente, surgem como uma nítida oposição entre o bem e o mal, entre a verdade e o erro, e lembrar velhos e perigosos maniqueísmos [...]. O conservadorismo, convém recordar, não se confunde como reacionarismo. Não pretende o conservador negar o progresso nem abolir o tempo. Ele aceita as coisas como estão – e aceita as mudanças, sem muita pressa, porém. No fundo, conservador não é um homem que quer voltar ao passado – mas que deseja chegar vivo e em boas condições ao futuro.”

E vale complementar com o que diz João Camilo em Os construtores do Império, de que “destina-se, afinal de contas, o conservadorismo a fazer com que as transformações não façam, nunca, o vagão saltar fora dos trilhos − mantém a sociedade em seus lugares, acomoda as reformas, serve de freio, de lastro [...]. Por isso, para que possamos compreender toda política verdadeiramente conservadora, não reacionária ou imobilista, devemos ter em mira, principalmente, que o conservadorismo não procura deter as reformas ou impedir as transformações, mas dar-lhes um tom moderado e tranquilo, acomodá-las às condições gerais da sociedade, naturalizá-las, em suma”.

Leia novamente as citações de João Camilo, paciente leitor, e me diga em que isso se parece com o “governo” Bolsonaro ou com o comportamento dos tios e tias do zap – como diz o Zero Três. Em que isso se parece com a guerra cultural dos incautos? Nada. O que essas pessoas fazem em nome do conservadorismo e da luta contra o politicamente correto é somente esgarçar ainda mais o frágil tecido social de nossa jovem democracia. Eles se veem como os salvadores da civilização ocidental, mas são somente bárbaros sedentos por poder.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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