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Cena de “Chevalier: A verdadeira história nunca contada”.
Cena de “Chevalier: A verdadeira história nunca contada”.| Foto: Divulgação/Searchlight Pictures

De origem genial e necessário,
Volveu o solo do vale sagrado,
Da deusa Terpsícore é afilhado.
E sendo da Harmonia adversário,
Se acresce poesia à sua ária
A Apolo ele seria comparado.
(Pierre-Louis Moline, poeta francês, sobre Joseph Bologne)

Não é a primeira vez – e, provavelmente, não será a última – que trago a essa coluna a crítica a um filme recente que reduz um personagem extraordinário quase à sua caricatura, ou faz dele um instrumento da visão ideológica do diretor ou roteirista. Foi assim com Billie Holiday, no filme de Lee Daniels, e foi assim agora, com o multitalentoso e absolutamente notável Joseph Bologne, o Chevalier de Saint-Georges, no recentíssimo filme de Stephen Williams: Chevalier: A verdadeira história nunca contada.

Joseph Bologne foi um desses personagens icônicos, que aparecem como que por um milagre e mudam a história por completo. Filho de um nobre senhor de terras francês, George Bologne de Saint-Georges, com uma escrava caribenha de nome Nanon, nasceu em 25 de dezembro de 1745, na colônia francesa de Guadalupe, e aportou com os pais na França, em 1753, para se tornar não só um reconhecido violinista virtuoso, mas também “grande esgrimista, compositor, maestro [...], jóquei habilidoso, exímio atirador, elegante dançarino, homem talentosíssimo de seu tempo e um dos músicos mais importantes da França, de 1765 a 1789. Foi imitado por seu estilo de vestir e copiado como um esgrimista. Havia até um livro sobre esgrima, de Henry Angelo – diretor de uma famosa academia em Londres –, que usava Saint-Georges como modelo. Ele caminhou entre a realeza e conheceu muitos dos grandes homens de sua época, incluindo o duque de Orléans, primo do rei Luís XV e do príncipe de Gales, mais tarde, rei George IV”, nas palavras de um de seus biógrafos, Walter E. Smith, em The Black Mozart.

Provavelmente foi uma acusação de assassinato (posteriormente retirada) que levou Georges Bologne a fugir com o pequeno Joseph e sua mãe para a capital francesa e, com isso, ter de encarar os enormes preconceitos de ter um filho com sua escrava e reconhecê-los. Mas foi a coragem desse homem que possibilitou não só esse ato, mas a capacidade de enxergar, desde cedo, a vocação do filho para uma vida ilustre ainda quando estavam em Guadalupe, onde se destacara nas aulas de introdução ao violino e em literatura francesa. Aos 7 anos, já na França, ingressou numa escola jesuíta e, aos 13, na famosa Académie Royale Polytechnique des Armes et de L’équitation, de Tessier La Boëssière, reconhecido mestre de armas, para aprender esgrima a equitação.

Joseph Bologne foi um desses personagens icônicos, que aparecem como que por um milagre e mudam a história por completo

Na escola, “ocupava-se todas as manhãs com o estudo sério dos mestres da literatura, ciência, música, língua e dança. O resto do dia era ocupado na sala de armas. Aos 15 anos, derrotou os esgrimistas mais fortes; aos 17 anos adquirira uma agilidade de movimentos que desconcertava os grandes mestres da esgrima”. Quando tinha 19 anos, “desenvolveu um belo corpo atlético. Tinha grande força, agilidade e velocidade. Destacou-se em todos os esportes e esforços físicos. Era o esgrimista mais gracioso e proficiente; um grande corredor e um maravilhoso cavaleiro. Era conhecido por montar os cavalos mais difíceis sem sela melhor do que a maioria com uma sela. No inverno, quando o Sena estava congelado, as pessoas se reuniam para vê-lo patinar no gelo com a mesma graça de Saint-Georges, o esgrimista e dançarino. Como atirador de pistola, raramente errava o alvo. Nunca houve um homem tão talentoso fisicamente”.

Ou seja, desde muito cedo Saint-Georges demonstrou seu talento em várias áreas e foi se tornando cada vez mais conhecido por elas. Mas foi seu interesse por música que o levou a estudar com os compositores Jean-Marie Leclair e Joseph Gossec, desenvolvendo rapidamente suas habilidades ao violino. Em 1772 tocou em seu primeiro concerto como violinista solo, no Concerto dos Amadores, acompanhado pela orquestra conduzida por Gossec. O jornal La Mercure publicou uma nota sobre as apresentações, dizendo: “Estes concertos foram executados no inverno passado, no Concerto de Amadores, pelo próprio autor e foram recebidos com os maiores aplausos tanto pelo mérito da execução, como pela composição”. Um ano depois, se tornaria ele mesmo o diretor do Concerto dos Amadores, elevando consideravelmente a qualidade técnica da orquestra.

Em 1776, se ofereceu para ser o novo diretor da Académie Royale de Musique, a fim de tentar recuperar a famosa Ópera de Paris, que padecia de problemas artísticos e financeiros. Mas algumas cantoras e dançarinas da Ópera não aceitaram ser dirigidas por um mulato, e escreveram uma carta de protesto à própria rainha Maria Antonieta, que, mesmo o tendo como amigo, o fez declinar.

Posteriormente, em 1779, conquistou o posto de superintendente de Música do teatro particular de Madame de Montesson, segunda esposa do Duque de Órleans – que, além de ser aspirante a atriz e escritora, o admirava deveras. Há indícios de que Saint-Georges tivera um caso com Montesson, mas nunca foram confirmados. A essa altura, Saint-Georges já era um homem requisitadíssimo e ocupado com muitas atividades; ele “dirigia o Concerto de Amadores e o teatro de Madame de Montesson; tocava violino no Palácio Real para a rainha Maria Antonieta, desempenhava suas funções como Tenente da Caça de Pinci e compunha”. Em 1784, deixa a diretoria do teatro de Madame de Montesson e aceita o posto de diretor de Concertos na casa da Marquesa de Montalembert. Também há indícios de que tenha se envolvido amorosamente com a esposa do general Marc René de Montalembert e, pior, com ela tenha tido um filho, que morreu ou foi substituído por uma criança branca. Mas tal rumor também nunca foi confirmado.

É óbvio que um homem com tamanhas habilidades e visto por muitos como “muito bonito”, além de ser exótico aos olhos das madames francesas, chamasse a atenção e tivesse se envolvido, de fato, com muitas mulheres. Saint-Georges nunca se casou, e há quem diga que uma paixão avassaladora, mas impossível de se consumar, ainda na juventude, o tenha feito decidir não mais se envolver emocionalmente com ninguém – o que não descartava o envolvimento sexual. Como diz Smith, Saint-Georges “frequentou os salões conhecidos da época, onde conheceu os ricos e famosos de Paris. E foi prontamente aceito. Sua excelente educação e suas maneiras encantadoras lhe trouxeram muito sucesso. Seu belo corpo e seu coração sensual certamente o ajudaram em sua associação com as damas de sua classe. A combinação de seu físico, sua gentileza, sua bondade, seu charme, o tornou irresistível para as mulheres”. Entretanto, tal faceta, obviamente, não deveria sobrepujar sua enorme contribuição para a arte.

Chevalier de Saint-George foi um compositor extremamente prolífico. Compôs “numerosas obras para violino, que nos permitem apreciar a adaptabilidade e a multiplicidade do seu talento como compositor, ao mesmo tempo que testemunham os seus notáveis dons como violinista”. Escreveu, ainda, “seis Quartetos para dois violinos, contralto e baixo, Op. I (1773); dez Concertos para violino principal, violinos I e II, contralto, baixo, oboé, flautas e duas trompas, compreendendo Op. II, III, IV, V, VII e VIII, que surgiram a partir de 1775; Sinfonias [...] para dois violinos principais; ainda, três Sonatas para clavicórdio ou piano forte, com acompanhamento de violino obrigatório (1781); e, finalmente, uma obra póstuma, preservada no Museu Britânico, composta pelas Três Sonatas para violino, BIC.I (por volta de 1801), e [...] romances e óperas cômicas”. Como nos testemunha o compositor André Grétry, contemporâneo de Saint-Georges:

“Os quartetos de Saint-Georges são escritos em um estilo etéreo claro e fluido. Mais flexível, mais cantante que o de Gossec, suas melodias, notadamente nos rondós, caracterizam bem o mulato sentimental e melancólico. Saint-Georges estava no seu melhor em seus rondós, e seus pequenos ares de vaudeville lhe deram uma reputação genuína; todos são instilados com movimento, com graça e são lembrados com facilidade. Devemos lembrar que Haydn também escolheu temas flexíveis e vivos para seus finais. É um dos prazeres musicais da época para redescobrir divisões simétricas, para repetir frases melódicas incidentais. O arredondamento, o retorno da frase na música, faz com que o material teatral demonstre graça, com um toque de langor crioulo. O músico gosta de repetir seus temas, a segunda vez na oitava inferior. Muitas vezes, especialmente nos rondós, apresentam repetições de notas que lhes dão um aspecto decidido e elegância. [...] Como um técnico do violino, Saint-Georges pode ser contado entre os mais brilhantes virtuoses franceses. Ele não apenas se esforça audaciosamente para atingir os limites máximos da manipulação dos dedos: ele os atinge; e, além disso, seu arco é vigoroso e exato. Ele costuma tocar passagens de acordes em um andamento rápido; ele rapidamente sobe uma escada de notas agudas habilidosas para cair bruscamente em um tom sonoro profundo. Ou realiza seus efeitos de acorde quebrado nas posições mais altas; em oitavas e até em décimos. A flexibilidade de seu arco permite que ele toque passagens variadas com a mais meticulosa perfeição, e lida com paradas duplas como um mestre. Era ao mesmo tempo extremamente ousado e habilidoso em passagens que exigiam brio e brilho, e cheio de sentimento nos movimentos lentos e romances aos quais era especialmente devotado. Juntamente com Gaviniès, Le Duc, Bertheaume e Paisible, o digno Chevalier de Saint-Georges representa a escola francesa de violino da segunda metade do século 18.”

Em 1785, com a morte do Duque de Órleans, seu mecenas e protetor, as dificuldades financeiras começaram a surgir. Seu pai, que morrera quando ele estava na casa dos vinte anos, deixou uma considerável fortuna para Nanon e um rendimento mensal de aproximadamente 8 mil francos para ele, mas seu estilo de vida era caro. Viajou duas vezes para a Inglaterra para se apresentar, tanto ao violino quanto como esgrimista, e ganhar algum dinheiro, mas as viagens foram frustrantes nesse aspecto. Mas logo surgiria uma aventura que mudaria os rumos de sua vida: a Revolução Francesa.

Temos um filme que mais se preocupa em criticar a escravidão e o colonialismo francês no Caribe, e em mostrar Saint-Georges escorregando por entre os dedos de mulheres brancas da elite, do que em mostrar o compositor, violinista, dançarino, atirador e esgrimista que ele foi

Chevalier de Saint-Georges, como um mulato caribenho, filho de uma escrava, conhecia a opressão do sistema monárquico e escravista, e, apesar de ele mesmo ser um aristocrata, compreendia os motivos da revolução. Alista-se no exército revolucionário e, em meio aos concertos – que ele não desistia de apresentar –, serviu como capitão e coronel da Légion Franche de Cavalerie des Américains et du Midi, formada por voluntários negros (escravos e livres). Para o comando desse pelotão em sua ausência, Saint-Georges recrutou o general Thomas-Alexandre Dumas, o primeiro homem negro a se tornar oficial do exército francês. Thomas Dumas é pai do famoso escritor Alexandre Dumas, pai, de Os Três Mosqueteiros e O Conde de Monte Cristo.

Durante a tomada do poder por Napoleão, Saint-Georges foi perseguido como suspeito e preso mais de uma vez, mas foi poupado da morte pela intervenção de amigos. Sua mãe, que vivera a vida toda reclusa e, para todos os efeitos, como empregada de Saint-Georges, e nunca fora apresentada à sociedade como sua mãe, morrera em 1795. Após o fim da guerra, fez uma viagem – igualmente frustrada – a Santo Domingo, no Caribe, em busca de terras que, possivelmente, seu pai havia deixado. Voltou à França sem nada. Já relativamente pobre e doente, com todos os seus amigos de outrora mortos ou tentando reconstruir suas vidas no pós-revolução, Saint-Georges caiu no ostracismo. Em 12 de junho de 1799, morreu de úlcera na bexiga, sem deixar descendentes. O musicólogo Lionel De La Laurencie escreveu:

“Assim desapareceu uma das figuras mais curiosas e envolventes do moribundo século 18. Saint-Georges era um homem extraordinariamente talentoso, cheio de generosidade e delicadeza de sentimento. Liberal e beneficente, muitas vezes ele se privou das necessidades da vida para ajudar os infelizes. Seus contemporâneos usam a expressão ʻintenso e suaveʼ para expressar seus dons de violinista, e, na verdade, realmente parece qualificar seu jeito, em que as tendências duais de seu temperamento se unem, num misto de vivacidade, brilho e melancolia sonhadora.”

Agora, o que fez o filme de Stephen Williams? Tomou uma série de “liberdades” que julgo complicadas, para dizer o mínimo. Fez Saint-George apanhar na escola e ser xingado de “macaco”; lutar com um oponente mediante um discurso eugenista raivoso, um tanto anacrônico, de um nobre, durante a disputa; fez sua mãe (em quem, pateticamente, num filme falado em inglês, colocaram um sotaque africano – e só nela!) ser o seu elo com suas origens africanas – a ponto de ele, em determinado momento, próximo à Revolução, abandonar as perucas da aristocracia e fazer tranças nagô nos cabelos (!); adotar um discurso anticolonialista, com sua mãe dizendo que ele foi tomado dela em Guadalupe, quando eles foram juntos para Paris; depois, com sua decepção pela recusa para ser diretor da Ópera, ser levado por ela aos imigrantes e libertos caribenhos na periferia de Paris, com os quais ele toca tambor em êxtase (!); e, o pior de tudo, reduz quase toda a sua vida ao possível romance com a Marquesa de Montalembert, que no filme é uma talentosa cantora, escolhida por ele para representar sua Ernestine, protagonista de sua peça musical homônima.

Apesar de tudo, é melhor um filme como esse ter sido feito e a vida de Chevalier de Saint-Georges chegar a mais pessoas do que continuar acessível apenas a pesquisadores

Reconheço a dificuldade de se fazer um corte temporal numa vida tão cheia de variáveis e tão rica em detalhes e circunstâncias. Uma série, talvez, fosse mais apropriada. No entanto, como diz o ditado, escolher é excluir. E as escolhas feitas pela roteirista e pelo diretor, a meu ver, diminuem – e muito! – o riquíssimo personagem que foi Chevalier Saint-Georges. Fazem-no uma espécie de latin-afro lover,  disputado por mulheres enciumadas (e perseguido por maridos igualmente ciumentos). O filme fala pouco de sua carreira como compositor, de seus reais desafios, de suas conquistas profissionais, de sua generosidade, de seus anos de formação (tão fundamentais para a construção de personagens inspiradores, como nos atesta o gênero literário Bildungsroman ou “romance de formação”).

A aclamação de Saint-George (no filme) se dá em seu apoio à Revolução Francesa, quando, ao final, a França já em chamas, ele compõe uma sinfonia e faz um concerto em apoio aos revolucionários. Agora – pasme, caro leitor! –, a música tocada no concerto nem sequer é uma composição dele, que nunca escreveu nada em apoio à Revolução, mas faz parte da trilha sonora, que foi composta pelos talentosos Kris Bowers e Michael Abels. A música final foi composta a partir do que eles afirmam ser um “hino escravo” encontrado entre as partituras de Bologne, cuja origem eles não fazem questão de informar. Diz Bowers em entrevista à Variety: “Há um hino escravo, que Michael e a supervisora musical, Maggie Rodford, descobriram em uma das peças de Joseph, e é nesse pequeno momento que o tema da melodia se destaca. Então, [no filme], é essa peça que sua mãe cantarola para ele quando criança e que se torna sua luta por justiça no final do filme”. Acredite se quiser, pois o trecho minúsculo, de duas notas, que ela balbucia para ele num determinado momento do filme nem sequer parece uma melodia.

Ao fim e ao cabo, temos um filme que mais se preocupa em criticar a escravidão e o colonialismo francês no Caribe, e em mostrar Saint-Georges escorregando por entre os dedos de mulheres brancas da elite, do que em mostrar o compositor, violinista, dançarino, atirador e esgrimista que ele foi. Nem mesmo sua proximidade com (e possível influência em) Mozart – que, alguns dizem, morou por um curto período com Saint-Georges numa mansão do Duque de Órléans – foi citada, apesar de o filme ter iniciado com um duelo imaginário entre os dois.

O leitor pode perguntar: “Então o filme não vale a pena?” Respondo: Claro que vale! Pois é melhor ele ter sido feito e a vida de Chevalier de Saint-Georges chegar a mais pessoas do que continuar acessível apenas a pesquisadores – eu mesmo o citei, pela primeira vez, num artigo de 2012. Veja o filme e tire suas próprias conclusões: está no Star+.

(PS: A tradução do poema em epígrafe é do colunista. Segue original:
“Was one of the sacred valley bore,
Of Terpsichore nursling and competitor;
And rival of the god of harmony,
Had he to music added poetry,
Apollo's self He'd been mistaken for”)

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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