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Naomi Watts (esq.) e Laura Harring (dir.) em cena de Cidade dos Sonhos (Mulholland Drive), de David Lynch.
Naomi Watts (esq.) e Laura Harring (dir.) em cena de Cidade dos Sonhos (Mulholland Drive), de David Lynch.| Foto: Divulgação

“O sexto livro da Eneida segue uma tradição da Odisseia e declara que são duas as portas divinas através das quais nos chegam os sonhos: a de marfim, que é a dos sonhos enganadores, e a de chifre, que é a dos sonhos proféticos. Face aos materiais escolhidos, dir-se-ia que o poeta sentiu de uma forma obscura que os sonhos que se antecipam ao futuro são menos preciosos do que os enganadores, os quais são uma invenção espontânea do homem que dorme.” (Jorge Luis Borges, O livro dos sonhos)

Cidade dos Sonhos – que, doravante, chamarei pelo seu título original, Mulholland Drive, pois o título brasileiro é horrível – é, provavelmente, o filme de que mais gosto de David Lynch. Eu disse provavelmente, pois não tenho certeza absoluta. Poderia dizer que é Uma História Real, mas seria estranho, pois é um filme de David Lynch que parece ter sido dirigido por outra pessoa (disso falaremos em outra ocasião). Poderia dizer que é Veludo Azul, uma obra-prima. Mas Mulholland Drive tem algo de especial. Não só pelas atuações maravilhosas de Naomi Watts – no papel que mudou sua vida e carreira – e Laura Elena Harring, mas porque é um filme complexo, sombrio, um dos mais assustadores de Lynch. E também porque não economiza nas experimentações surrealistas e oníricas, cujos desafios no roteiro só poderiam ter sido vencidos por um gênio do cinematógrafo como ele.

Mulholland Drive tem algo de especial. Não só pelas atuações maravilhosas de Naomi Watts e Laura Elena Harring, mas porque é um filme complexo, sombrio, um dos mais assustadores de Lynch

O filme fora concebido como uma série, que seria uma espécie de spin-off de Twin Peaks, mas a ABC recusou o piloto, filmado em 1999. Tony Krantz diz: “A ideia era que, se Twin Peaks fosse bem, a segunda temporada terminaria com Audrey Horne chegando em Los Angeles para fazer carreira em Hollywood”. A recusa da ABC se deu por alguns motivos, como nos elenca Justus Nieland: “Havia muito fumo. O close-up de cocô de cachorro no pátio interno dos apartamentos de Havenhurst era excessivo. Havia muitas excentricidades lynchianas – personagens secundários que apareciam apenas uma vez. E, o mais angustiante, o ritmo era muito lento”. Ou seja, críticas absolutamente injustificadas quando se trata de um projeto de David Lynch. Por fim, o projeto foi para a gaveta. Mas após o trabalho incansável do produtor Pierre Edelman, que acreditava que Mulholland Drive seria perfeito como um longa, e a insistência de Krantz para vencer a relutância de Lynch – ele havia desistido do projeto –, a ponto de causar o rompimento da amizade entre eles e nunca mais trabalharem juntos (Krantz ameaçou processar Lynch), o filme voltou a ser filmado a fim de completar o piloto, que tinha apenas 60 minutos. Naomi Watts e Laura Harring, obviamente, se sentiram felizes com a retomada. Diz Watts: “Quando a ABC não aceitou o programa, pensei: ʻÓtimo, estou no único projeto de David Lynch que nunca verá a luz do dia, e de volta à lutaʼ”. Mas Harring complementa: “Depois de passar um ano ouvindo David dizer que ʻMulholland Drive morreu na praia e ninguém vai vê-lo jamaisʼ, ele ligou para Naomi e para mim pedindo para irmos à sua casa […]. Estávamos sentadas lá, Naomi à sua direita, eu à esquerda, e ele anunciou: ʻMulholland Drive vai ser um longa-metragem internacional – mas vai haver nudez!ʼ”. O resultado é estupendo. Como resume Kristine McKenna:

“O enredo de Mulholland Drive é complexo, mas faz sentido à luz do fato de que a vida não se desenvolve em uma linha clara e reta. Todos temos lampejos e recordações, fantasias, desejos e sonhos de futuro à medida que avançamos no que realmente acontece à nossa volta ao longo do dia. Essas zonas da mente se interpenetram e se desligam, e o filme tem uma lógica fluida que reflete esses estados múltiplos de consciência e explora diversos temas. Dentre eles, as esperanças e os sonhos desfeitos de jovens criativos; o que a indústria do cinema faz com as pessoas e o poder diabólico dos agentes que tentam controlar os artistas que nela trabalham; e a obsessão erótica que degenera em ódio assassino. A cidade de Los Angeles também é tema do filme, que foi rodado em locações no sul da Califórnia.”

Eis um bom resumo da história da jovem que sonha em ser atriz e está deslumbrada com a possibilidade de trabalhar em Hollywood. Os desdobramentos desse sonho, que vão se desnudando a nós de forma absolutamente fragmentária e não linear, misturados a delírios, paixões, ódios, sexo, violência e mistérios, são um caldo denso daquilo que David Lynch faz de melhor: conduzir suas atrizes e atores. Naomi Watts fala de sua experiência: “Estava há (sic) dez anos fazendo testes e nada, e arrastava todos aqueles anos de rejeição como uma ferida aberta [...]. Entrava nas salas com um forte desespero e intensidade e tentava me refazer constantemente, não é de se admirar que ninguém me contratasse. O que você quer? Quem eu devo ser? Diga-me o que precisa e serei isso. As cosias não estavam indo bem para mim”. Mas, quando conheceu David Lynch, tudo mudou: “Entrei na sala e David emanava luz como eu nunca tinha visto num teste antes [...]. Senti que o olhar dele era real, verdadeiro e interessado. Não sabia nada sobre a personagem e isso provavelmente me favoreceu, porque não senti que tinha de ser outra pessoa – podia ser eu mesma. Ele fez perguntas, dei uma resposta longa a uma delas, parei e disse: ʻvocê quer mesmo falar sobre isso?ʼ Ele respondeu: ʻsim! Conte-me a história!ʼ Senti que éramos iguais e ele estava realmente interessado em mim, e fiquei chocada porque isso nunca tinha acontecido antes. Àquela altura não tinha fé na minha capacidade e minha autoestima estava muito baixa, então saí de lá dando pulos, mas tive a sensação de que algo grande tinha acontecido, e fiquei grata pela experiência”.

As cenas de nudez e sexo foram conduzidas com a costumeira delicadeza de Lynch, apesar de densas e, às vezes, desconfortáveis. Há uma cena em que a personagem de Naomi se masturba, mas seu estado emocional era devastador. Lynch insistiu que Naomi repetisse a cena, à exaustão, até que ela, de fato, alcançasse o estado de espírito da personagem. Ela diz: “Tive um problema estomacal naquele dia porque estava totalmente fora de mim. […] Como se masturbar diante de uma equipe de cinema completa? Tentei convencer David a filmar outro dia, mas ele não quis: ʻNaomi, você pode fazer isso, você está bem, vá ao banheiroʼ. Ele queria um desespero e uma intensidade raivosos, e toda vez que a câmera se aproximava, eu dizia: ʻNão posso, David, não posso!ʼ Ele respondia: ʻEstá tudo bem, Naomiʼ, as câmeras seguiam rodando e aquilo me deixou furiosa. Ele estava, definitivamente, me forçando, mas o fez de um modo gentil”. E a cena é, de fato, verdadeiramente visceral como deveria ser.

O relato de Watts é muito curioso, pois sua personagem no filme é exatamente essa jovem, ansiosa e inexperiente atriz em busca de uma oportunidade, e a cena do teste que ela faz no filme é espetacular ao retratar, em poucos minutos, não só o inegável talento da personagem, bem como todo o jogo de poder, manipulação e desprezo que ocorrem nesses testes. O sonho desfeito da personagem, tornado em pesadelo – que, graças a Deus, não ocorreu com Naomi –, é aterrador. Nossa mente, quando capturada pela decepção, pelo desprezo e pela vingança – ou seja, pelas paixões –, é capaz de tudo.

O filósofo romeno Gabriel Liiceanu, em Do Ódio, diz o seguinte: “É claro que no mapa da psique humana, formada de pensamentos, vontades e sentimentos, o amor e o ódio ocupam, no território dos sentimentos, uma região especial: a das paixões. As paixões são sentimentos que chegaram a uma intensidade extrema, sentimentos que atingiram uma forma paroxística. No Dicionário de Psicologia, de Doron e Parot, a paixão é definida como uma ʻmobilização persistente de energia para atingir um escopo, não sombreada de nenhum revés ou desmentidoʼ. E o clássico da psicologia francesa, Théodule Ribot, diz que a paixão é para a afetividade o que é a ideia fixa para o pensamento”. A perturbação da jovem atriz é fruto dessa “fricção” como diz Liiceanu, em que o amor e o ódio se fundem num desejo de destruição e vingança. Betty Elms, o alter ego inocente que Diane Selwyn projeta para livrar-se da culpa por ter sucumbido ao jogo de poder e sedução hollywoodiano, deixa transparecer sua fragilidade. Justus Nieland é certeiro:

“Os fatos tristes sobre o que significa para Diane ser apenas ela mesma são mais tristes à luz da impessoalidade libertadora e do alcance emocional do primeiro segmento pré-pessoal do filme. A remodelação de Diane de si mesma como Betty, e do fim do amor por Rita como uma série de arroubos desorientadores, acontece à beira da melancolia, da perda e da crueldade psíquica. Seu produto não é apenas a abdicação inebriante e transitória de sua personalidade, mas também, para os espectadores de Lynch, uma experiência de cinema que nos emociona em virtude de sua impessoalidade.”

Justin Theroux, que faz o diretor Adam Kesher, diz de sua experiência com o filme, ao vê-lo pela primeira vez: “Foi como ouvir Sgt. Pepperʼs pela primeira vez […]. Conhecia o roteiro, mas não sabia realmente do que se tratava enquanto filmávamos, e o produto final é tão distinto da nossa experiência de filmagem – isso fala do gênio de David como cineasta. O uso que ele faz do som e da música, a justaposição de tramas – ele fez um trabalho de mestre criando uma atmosfera que não podíamos antecipar ao rodar”.

Por fim, Mulholland Drive é um filme sobre paixões e mistérios. O que se desenrola na tela, diante de nós, é uma rede intrincada de situações-limite, de violências psicológicas e físicas, de sedução e de sexo, frutos de uma mente atormentada e totalmente entregue ao delírio vingativo das paixões desordenadas.

Nossa mente, quando capturada pela decepção, pelo desprezo e pela vingança – ou seja, pelas paixões –, é capaz de tudo

Os momentos finais do filme, em que surge o misterioso Clube Silencio, são arrebatadores, sobretudo pela performance catártica da cantora Rebekah Del Rio, que chegou a Lynch de maneira fortuita, foi incluída no filme de maneira fortuita, e o resultado, mais uma vez, demonstra a genialidade de Lynch. Ele conta:

“Acidentes felizes acontecem. Brian Loucks ligou quando estava fazendo Mulholland Drive e disse: ʻQuero que você conheça alguém chamada Rebekah Del Rioʼ, então ela ia ao estúdio, talvez tomar um café, conversar e cantar algo para mim. Quando chegou, em menos de cinco minutos, antes de tomar o café, ela foi para a cabine de som e cantou exatamente o que está no filme. Aquilo não foi mexido, é o que gravamos. Não havia uma personagem assim no roteiro até Rebekah aparecer no estúdio aquele dia, e ela escolheu o que ia cantar. Estava pensando na cena que tinha escrito para o Clube Silencio, ʻNo Hay Bandaʼ, que em espanhol significa ‘não há banda’, e aquilo a influenciou, porque ela cantou sem uma banda. Então ela sobe no palco e canta lindamente, depois cai e o canto prossegue.”

O filme, como diz Lynch, “foi exatamente o que devia ser”. E eu digo: maravilhoso. Uma experiência cinematográfica intensa e profunda da qual você não sairá o mesmo. Se ainda não viu, amigo leitor, corra para ver.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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